sábado, 20/04/2024
Margem de Vila Nova de Gaia, com a lua cheia a nos vigiar Foto: Hernan Centurion

Diário da viagem a Santiago de Compostela

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Por Hernan Centurion (*)

 

Família

 

Talvez esse seja o maior período em que fico sozinho sem vocês três. Um desafio diferente, talvez o mais intrigante dessa minha ida para São Paulo há 21 anos.

Família minha muito querida, um belo exemplo, a qual construímos frente a dificuldades que o mundo nos impõe a cada instante, repleto de injustiças e desumanidade. Tenham certeza de que vocês são o sentido da minha existência neste plano, meu aconchego, meu orgulho, enfim, a esperança de que a vida tem seu lado cândido e puro.

Agradeço aos céus, a cada momento, pela oportunidade que me foi dada em ser marido de você, Aline; filho de Gugu e Sônia; e pai de vocês dois, Henrique e Osório, minhas joias raras, motivos que me fazem buscar ser hoje melhor que ontem e pior que amanhã, numa procura incessante do mínimo de retribuição pelo que de bom vocês fazem por mim.

Foi nesta busca do recomeço, reconhecendo minhas falhas e finitude é que parto hoje nesta jornada – uma verdadeira missão, um até logo – para aprender ainda mais sobre mim, renovar-me espiritualmente, certo de que Deus estará comigo, guiando-me, assim como todos vocês também estarão, ornando com seus sorrisos as prateleiras empoeiradas da minha memória e, sem dúvidas, bem guardados dentro do meu coração.

Finalizo já transbordando de saudades com a frase autoral que segue: “a maior grandeza de um homem é reconhecer sua pequenez, pois só assim crescerá, amadurecerá e, então, perceberá, em tempo, quão grande é o espírito, perene, e quão pequena é a matéria, fugaz”.

Beijos de quem ama vocês infinitamente…

 

Hernan Centurion

Hoje começa de fato a jornada de renovação espiritual. Confesso que desde ontem tive uma sensação diferente, aquele “frio na barriga”, um tanto ansioso e muito reflexivo sobre tudo que irei passar, vivenciar e assimilar. Com os sentidos aguçados, proponho-me estar disponível para usufruir de todas as experiências que doravante presenciarei… assim espero.

Várias semanas se passaram, treinos físicos, calçado e coração amaciados, talvez no meu melhor momento de preparos físico e espiritual como nunca dantes.

Aqui, do aeroporto de Aracaju, olho para trás e vejo minha família que muito me orgulha e propulsiona, para que eu busque por eles as forças necessárias para seguir tentando ser uma pessoa melhor, a tão utópica evolução.

Interessante que a Vida nos proporciona várias oportunidades para que sejamos bons, quer nascendo num berço rico em princípios, quer estudando em colégios de referência educacional, ou capacitando-nos para ajudar o próximo como médico, casando-se com uma mulher iluminada, tendo filhos notadamente especiais, lapidando a pedra bruta nos canteiros dos templos sagrados como maçom…

Neste momento o “vigiai” que lemos nas Sagradas Escrituras faz-me sentido, pois a mim revela que Deus sonda nossas vidas, colocando, bem à nossa frente, oportunidades e desafios que devem ser prontamente percebidos e aproveitados, para o nosso bem e de todos que nos cercam.

Que São Tiago, filho de Zebedeu e Salomé, o apóstolo de Compostela e São Paulo, de Tarso, que foi purificado ao caminho de Damasco, conduzam-me pelo caminho de Santiago em busca da Verdade, renovado e incólume.
“Apertem os cintos, prontos para decolagem”.

 

Hernan Centurion

 

Morar em Aracaju é uma verdadeira dádiva de Deus, entretanto partir daí em viagem é uma extenuante jornada, uma vez que nossa malha aérea é deveras insuficiente. Vejamos: depois de um “pulinho” em Recife, passagem por Campinas e aquele voo de 9 horas direto para Lisboa, contabilizei “insignificantes” 24 horas de muita espera e aperto, já que peregrino que se preza não viaja de classe executiva, visto que ele deve trazer consigo o minimalismo que o Caminho propõe.

Ainda tive que exercer meu mister como médico ajudando uma passageira que provavelmente teve uma síndrome vaso-vagal, com consequente queda da pressão arterial… pernas para cima, suco de laranja com açúcar e uma pitada de sal na língua, assim como minha saudosa vovó fazia muito bem, sem ter sequer pisado em uma cadeira de faculdade.

Não bastasse tudo isso e para fechar com chave de ouro minha chegada “triunfal” (sem banho, descabelado, olheiras, por exemplo), enfrentamos aquela “singela” fila de 1 hora e meia na imigração. Nessa hora lembrei minha ascendência belga e portuguesa que bem poderiam me proporcionar o passaporte da União Europeia e, assim, poupar-me desse transtorno.

Brincadeiras à parte, o que realmente me impressionou assim que acessei minhas redes sociais foi a avalanche de mensagens de apoio, incentivo e orações de familiares e amigos (até pessoalmente de algumas pessoas no aeroporto ao identificar a concha exposta na mochila), dando-me mais forças para seguir em frente. Como é confortante ver que esse propósito contagia e incentiva outros tantos que também perseguem momentos de auto-conhecimento e evolução.

Como ninguém é de ferro, agora é momento de pausa para um café expresso com pastel de nata, esperando meu próximo destino, a encantadora cidade do Porto.

Após longa espera com recheio de expectativa, cá estou eu ora, pois, como bem dizem nossos patrícios, banho tomado, roupas lavadas (ser peregrino não é só ter lazer), a contemplar o cais da Ribeira, a ponte Luís I e o Mosteiro da Serra do Pilar, sob a luz de um belo entardecer, contrastando perfeitamente as cores vivas como laranja, verde, azul e carmim dos edifícios à margem de Vila Nova de Gaia, com a lua cheia a nos vigiar, ouvindo ao fundo conversas banais ininteligíveis de transeuntes que esbanjam sorrisos e muita alegria… também pudera, beber um bom vinho e apreciar a culinária portuguesa (sardinhas no azeite com torradas e queijos da Serra da Estrela) neste cenário… hum, não poderia ser diferente.

“Tim tim” aos amigos, pois amanhã pegaremos o comboio com muita história ainda para contar.
Destino: a medieval cidade galega de Tui.

 

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Sobre Hernan Centurion

Hernan
(*) Médico cirurgião e coloproctologista. Mestre maçom da Loja Maçônica Clodomir Silva 1477, exercendo atualmente o cargo de venerável.

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Um comentário

  1. Quanto ao palimpsesto do colega @⁨~Hernan Centurion Sobral⁩…
    Houve um tempo em que a trilha de Compostela era algo como sacro-fashion. Uma publicação forjou esta situação.
    Quando li, creio que em 89, “Diário de um Mago”, percebi algumas coisas: 1) Coelho entendia muito de marketing druídico-xamânico. Neste ponto, como defensor do livre-mercado, de bem com a cultura capitalista que sou, achei tudo muito certo (não que o mago precise da minha aprovação, bem entendido). É mercadoria, é venda, é lucro. Melhor para ele; 2) “Diário de um Mago” é um plagio descarado de “A Erva do Diabo”, escrita por Carlos Castañeda, sobre os supostos ensinamentos do índio-feiticeiro, da linhagem Yaqui, oriundo de Sonora.
    E não foi apenas, como se fosse pouco, com Dom Juan que Carlos Castañeda aprendeu sobre os mundos “tonal” e “nagual”. Havia outro igualmente poderoso: Dom Genaro.
    Coelho sabia que alguém iria notar a “xerox”, então até cita Dom Juan e Carlos Castañeda no tal diário.
    Note-se que, logo no início, o ritual de espadas bem que me lembrou o épico “As brumas de Avalon”, de Marion Zimmer Bradley, publicado cinco anos antes. Pode ser só cisma deste pobre ancião senil. Mas ninguém me tira a impressão de que ali tem coisa…
    Mas pro mode quê vem este estranho introito ao comentário que farei sobre o artigo de Hernan Centurion?
    É que Centurion, revela que irá, pelo caminho, com o mesmo coração daquele soldado, em Cafarnaum, citado por Mateus. Ou seja, irá movido pela fé.
    Seu texto, livre de artifícios, nos toca e comove.
    Nada do toque “Star Wars” que permeia as coelhonianas páginas.
    A simples complexidade está na maneira serena com que escreve, sem frases de efeito.
    Eis um homem de conhecimento a compreender que de outro conhecimento necessita em seu caminho que toma a direção da Luz.
    Pedreiro que é, está ciente da cota de pedra e argamassa que lhe cabe sob os desígnios do Grande Arquiteto.
    São linhas fraternas, amigas, humildes, seguras. Podemos também, dentro das nossas possibilidades, seguir por elas.
    Podemos, como Hernan Centurion, valermo-nos da bússola cuja agulha está imantada de força de vontade e firme crença.
    Fez-me muito bem lê-lo neste domingo.

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