segunda-feira, 22/04/2024
Flip em Paraty, no Rio de Janeiro Tânia Rêgo/Agência Brasil

Para onde vão literatura e arte?

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Por Luciano Correia (*)

 

Num dos programas que vejo no YouTube, o escritor Marcelo Mirisola faz um depoimento demolidor sobre o estado da arte da literatura, apontando para uma terrível conclusão: nessa quadra atual ela caminha apressadamente para a irrelevância. Quem fala isso não é um Zé qualquer, mas um nome bastante festejado nos caldeirões mais efervescentes da literatura brasileira, apesar de sustentar uma posição de maldito, uma espécie de outsider no mundinho bostífero das celebridades literárias que infestam as Flips da vida.

Marcelo Mirisola  Foto: Wikipedia

E as Flips, como se sabe, tornaram-se quermesses comerciais para gozo & grana dos homens de marketing, das editoras puramente preocupadas em vender, vender e ponto final. Porque a literatura bruta, esteio da produção criativa das grandes narrativas, essa mesma corre em outros lugares, paralelo ao teatro bufão dessas feiras. Sim, há outra patacoada muito mais daninha à literatura: são as academias de letras que pululam em todos os cantos, como pragas, cumprindo uma missão justamente contrária ao que se propõe, ou seja, de promover a produção literária e, sobretudo, desenvolver políticas de incentivo à criação artística, de renovação das linguagens, valorização do livro etc. Em vez disso, esses ridículos clubes de comedores de empada, no dizer de Amaral Cavalcante, funcionam como túmulo da boa literatura, com sua cafonice e seu bolor incrustados nas batas de seus pretensiosos acadêmicos.

Este longevo escrevinhador de crônicas pede desculpas por ter cedido ao falso culto literário e ter entrado em uma delas, na cidade onde não nasci, mas me criei e até hoje mantenho laços profundos. De Itabaiana me interessa tudo, a começar pela minha maior paixão entre as paixões de um homem, a Associação Olímpica de Itabaiana. De sua vetusta academia não quero nem saber, e fiquem à vontade os que se arvorarem a propor minha expulsão. No meu caso, não fui parar lá por vaidade ou pelo brilho efêmero de seus saraus, mas atendendo ao apelo de um velho amigo, o historiador e escritor Vladimir Souza Carvalho, este sim, autor de fôlego, inventivo, um dos últimos na galeria dos grandes de Sergipe D’El Rey.

Voltando a Mirisola, cujos livros leio desde o final dos anos noventa, além de sua literatura às vezes ácida, ele também incorpora o papel de um encrenqueiro nato, com sua esculhambação e desprezo por gente como Caetano Veloso, Paulo Coelho e a própria Flip de Paraty, cuja edição de 2006 contou com sua apreciação de “escritor convidado”, um relato cáustico publicado na internet, porque o jornal que encomendara o texto, o Zero Hora de Porto Alegre, roeu a corda e se acovardou. Claro que essa atitude típica de franco atirador vende livros e rende bons lucros, sobretudo. Mirisola não joga para todos, mas para a plateia dele, da qual faço parte, mas sem o alarde dos macacos de auditório.

Mas o que menos importa aqui é saber se ele age por marketing pessoal ou não. Eu nem creio nisso. O relevante é sua visão sombria sobre os rumos da literatura, tragada pela onda comercial e banalizadora do mercado atual, despejando nas prateleiras títulos baseados em temas, formatos e linguagens pasteurizados. Isso sem falar na farsa das autoajudas e, mais recentemente, da onda politicamente correta e dos identitários, implantando uma reducionista política de cotas em tudo, cerceando abordagens que destoam de suas cartilhas e, com isso, incorrendo em novas formas de fascismo.

Que não deixemos de lembrar em cada artigo: a ação deletéria das bolhas, o ataque implacável e violento à figura do outro, a intolerância com as diferenças, isto não são propriedades da praga bolsonarista, mas também de uma certa esquerda que trocou as conquistas clássicas e a luta por justiça social pela fragmentação, pelas causas individuais e específicas em detrimento do todo, da totalidade, da busca de consensos. Num ambiente tão polarizado e patrulhado pelas minicertezas de cada facção, sobra para a criatividade artística, com a literatura sendo uma das primeiras vítimas. Contraditoriamente, justo no momento em que a humanidade dispõe de ferramentas que radicalizam as trocas de conteúdos, o mundo sofre um lastimável empobrecimento cultural, daí o alerta de Marcelo Mirisola. No andar das coisas, leitor de livros vai se tornando um personagem esquisito, de hábitos estranhos, um fora de moda deslocado do seu tempo.

Trata-se do mesmo fenômeno que gradativamente vem precarizando o jornalismo e substituindo-o pelo vale tudo das redes midiáticas, que são tudo, menos sociais. Os jornais desapareceram no mundo inteiro e restam poucas empresas resistindo na medida do possível, após uma drástica redução do número de assinantes e de receitas publicitárias. O mesmo com as revistas. A própria radiodifusão, tão senhoras de si até ontem, com poder de erguer e destruir governos, definha entre os públicos mais jovens.

Um teste rápido: quem, dessas novas gerações, ainda assiste a telenovelas? Programas de rádio? Enfim, sós: seus apresentadores sensacionalistas e seus espetáculos, cada vez mais sem público. Com a erosão desse velho mundo analógico, o valor da cultura é ressignificado, quando não banido. Ser intelectual não diz mais nada para essa gente que domina a esfera pública, nos seus diferentes níveis, nem confere mais certo charme aos que pousavam à frente de estantes. Os governantes, antes tão ciosos em manter pelo menos a aparência alguma erudição verbal, hoje só pensam nas selfies junto às multidões que lotam suas micaretas o ano todo. É desse mundo que Mirisola desembarca para sua literatura insular. E do qual eu também pretendo descer.

 

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Sobre Luciano Correia

Luciano Correia
Jornalista e presidente da Fundação Cultural Cidade de Aracaju (Funcaju).

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2 comentários

  1. Apois, Seo Correia…

    Quase que cometo uma gafe estética e intelectual — disse a mim mesmo: “O quê??!! Alguém lê Mirisola por aqui?”
    Contudo, logo em seguida, revi minha estupefação. Afinal, por aqui há quem leia sim, e leia bem. E, de quebra, escreve bem. E bem melhor que eu, diga-se de passagem marcada para Pasárgada.

    Luciano Correia a chutar o balde, o pau da barraca e o baixo-ventre das iletradas academias! E o fazendo com rascante elegância.

    Mas o ponto foi o jornalista de escol citar um cão danado: o Marcelo Mirisola e, pari passu, tocar com dedo na purulenta ferida aberta na carne da descambada produção literária in loco e alhures — salvaguardadas as devidas exceções. Marisola, uma destas.

    Em tempo: não sou de me deixar fascinar por rebeldes e malditos de meia-pataca, por insurreições histéricas manifestas em nome de ninharias.

    Mas, imerso no trabalho e nos estudos, ao mesmo tempo, no claustro [como diria Mirisola] em que produzo, penso, escrevo, bebo, fumo até a Imperatriz me convocar e provocar, a ouvir, neste momento, as sonatas para violino de Bocherini, fui como que atraído pela singularidade [roubo o termo da alta cosmologia] do artigo do velho Correia. E, como em oníricas brumas, retornei, mnemonicamente ao passado. Recordei trecho marcante de “Joana a contragosto”, do cáustico escritor aqui memcionado: “Joana é meu corvo nevermore”. Não lembro bem, Seo Correia, confesso, de todo o livro.
    E lembro, alguma coisa [enquanto as sombras conradianas da senilidade cravam em mim suas garras infectas pelas águas do Letes], de “O Homem da Quitinete [ou será da varanda?] de Marfim. Crônicas, se bem ou mal recordo.

    Entre os textos desta coletânea, digamos assim, recordo do escárnio inteligente que o autor atira contra o mano Caetano. E doutra crônica em que Mirisola desmistifica Foucault [aí foi desta velha traça aqui ir ao recatado delírio].

    O lamentável é que “li de emprestado”. Os livros não eram meus. Até tentei roubar um, apostando no esquecimento do proprietário. Que nada: cobrou-me entre copos de cerveja. Devolvi, sim.

    Apois, Seo Correia [Não que isso seja de grande valia], vosmecê figura entre os pouquíssimos, por aqui, aos quais devoto admiração e respeito. Não quero com isso, bem entendido, dar a impressão de que, do seu lado, haja sentimento correlato. Jamais cobro este tipo de equidade a seu ninguém.

    Enfim, texto marcante. Touro em loja de porcelanas. Outros, do tipo, venham. Os lerei com alegria.

    Forte abraço🍷🍷

  2. Bravo, meu caro. É isso!

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