Por Juliano César Faria Souto (*)
Vivemos um tempo de rearranjo profundo na geopolítica mundial. Enquanto o noticiário se concentra em bombas e fronteiras, por trás dos conflitos armados entre Israel e Irã ou Rússia e Ucrânia, há uma disputa muito maior em curso: a nova guerra fria entre Estados Unidos e China.
Não se trata apenas de comércio ou tecnologia. É uma batalha por hegemonia estrutural, envolvendo moedas, rotas marítimas, cadeias produtivas, recursos naturais e influência política global. Um tabuleiro tridimensional onde cada peça, cada guerra, cada silêncio é estratégico.
1. A Nova Guerra Fria: EUA x China como disputa sistêmica
A rivalidade entre as duas maiores potências do mundo não é episódica — é programática, estratégica e multidimensional.
Os Estados Unidos querem conter a ascensão chinesa em áreas cruciais: semicondutores, inteligência artificial, defesa, transações financeiras e infraestrutura digital. Para isso, lançam mão de sanções econômicas, controle tecnológico, alianças militares e pressão sobre os principais fornecedores da China – como Irã, Rússia e até Taiwan.
O campo tecnológico tornou-se o epicentro silencioso dessa nova guerra fria
A empresa taiwanesa TSMC, por exemplo, é responsável por mais de 50% da produção mundial de chips avançados, fundamentais para tudo — de sistemas de defesa a carros autônomos. Os EUA têm restringido o acesso da China a essas tecnologias, vetando a venda de chips de ponta por parte da NVIDIA e bloqueando a exportação de máquinas da ASML, empresa holandesa que domina a litografia ultravioleta extrema (EUV).
Por outro lado, a China investe bilhões para alcançar autonomia tecnológica por meio de programas como o “Made in China 2025”. Nesse esforço, empresas como a Huawei lideram o avanço do 5G em países da Ásia, África e América Latina, mesmo enfrentando sanções e boicotes diplomáticos de Washington.
Enquanto os olhos do mundo estão voltados para os conflitos armados, essa guerra digital e industrial molda o futuro com ainda mais impacto.
A China, por sua vez, articula sua resposta em múltiplas frentes:
Fortalece alianças com países sancionados.
Busca autonomia tecnológica e energética.
Realiza investimentos estratégicos em regiões-chave da África, Ásia e América Latina
2. Israel x Irã: um teatro indireto da disputa EUA x China
O recente acirramento entre Israel e Irã não pode ser visto como um conflito apenas religioso ou regional. Ele afeta diretamente a equação energética e estratégica da China.
O Irã é um fornecedor crucial de petróleo e gás para a China, fora da esfera de influência americana.
Faz parte do corredor econômico China-Irã, essencial para a Nova Rota da Seda.
Se o Irã for desestabilizado militarmente, a China perde:
Um dos seus principais pontos de apoio energético alternativo ao Golfo.
Barganha geopolítica com os grandes exportadores sob tutela ocidental.
A guerra no Oriente Médio não interessa diretamente aos EUA, mas pode servir ao objetivo estratégico de enfraquecer um aliado chave da China.
3. Rússia: enfraquecida, útil e refém
Na Ucrânia, a Rússia afunda num conflito sem fim, mas isso também atende a interesses geopolíticos:
Moscou perde força militar e prestígio diplomático.
Fica dependente economicamente da China, que compra petróleo e gás com desconto.
Para os EUA, o cenário ideal é:
Nem a vitória russa (que fortalece o eixo oriental),
Nem o colapso russo (que entrega Moscou de bandeja a Pequim).
A Rússia virou uma “carta fora do baralho”, mas ainda muito útil como distração.
4. Europa: entre a estagnação e a submissão
A Europa, outrora aspirante à terceira via geopolítica, hoje aparece dividida e limitada:
Militarmente dependente da OTAN e dos EUA.
Economicamente dependente da China.
Politicamente enfraquecida, presa entre pressões ideológicas e pragmatismo econômico.
5. Dois conflitos, uma mesma função: manter o status quo americano
As guerras da Ucrânia e do Oriente Médio não se resolvem porque não convém resolvê-las.
Servem para:
Enfraquecer os pilares estratégicos da China.
Evitar um bloco coeso sino-russo-iraniano.
Prolongar a vantagem relativa dos EUA, mantendo as potências emergentes divididas, pressionadas e em conflito indireto.
6. América do Sul e África: entre invisibilidade e potencial estratégico
E onde estamos nós, latino-americanos e africanos, nessa equação?
Somos ricos em recursos, mas pobres em coordenação e ambição.
A China é hoje o principal parceiro comercial de quase toda a América Latina e África.
Os EUA tentam conter esse avanço com: sanções, diplomacia tradicional, financiamentos condicionados.
Conclusão: uma guerra invisível, mas muito real
O grande projeto americano é simples: manter sua supremacia até onde der. Para isso, não é preciso vencer guerras. Basta prolongá-las.
A China, enfraquecida nos flancos (Rússia, Irã), tenta compensar com influência no Sul Global — mas também paga o preço da contenção estratégica.
Um convite à reflexão
Estamos no meio do tabuleiro, mas ainda fingimos estar na arquibancada.
O Brasil tem história, tem tamanho, tem recursos — mas falta diplomacia de Estado.
A verdade é: não temos voz própria. E sem voz, não há escolha.
Te convido, leitor, a refletir comigo sobre o que já fomos e o que ainda podemos ser.
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