sábado, 20/04/2024
Antônio Risério: "figura ímpar da cultura brasileira" Reprodução: Sesc TV

Que Risério é esse, hein?

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Por Luciano Correia (*)

 

Conheço o antropólogo, poeta, ensaísta e historiador Antônio Risério de algumas das belíssimas canções que compôs para a música brasileira, belas parcerias com gente como Gil, Moraes Moreira ou Roberto Mendes. Ou seja, também é um refinado compositor, e dos bons. Depois fui encontrando com essa figura ímpar da cultura brasileira em depoimentos para inúmeros documentários. Por fim, fui arrebatado na condição de fã do seu canal no YouTube, onde ando me socorrendo da mediocridade que assola a TV e o rádio.

A partir de suas indispensáveis entrevistas no canal, fui abrindo novas fronteiras entre autores que atualmente dão conta das respostas para o vazio inaugurado pela debacle do socialismo real e a completa perda de rumo em que mergulhou a esquerda nesses tempos sombrios. Uma época marcada, de um lado, pelo ressurgimento da direita com força total no mundo inteiro, e, do outro, pela substituição das causas históricas da esquerda clássica pelo fascismo identitário dos que agora falam em seu nome, notadamente as franjas “ideológicas” do PT e do Psol em corpo inteiro.

O primeiro desses autores foi o próprio Risério, em “Sobre o relativismo pós-moderno e a fantasia fascista da esquerda identitária”, livro indispensável para quem quer entender o Brasil de hoje e o que há de falsidade e mistificação no discurso dessa esquerda supostamente igualitária e reparadora de direitos. Li outros trabalhos sobre esse tema que muito me interessa, mas o assunto de hoje é a incursão de Risério no território da prosa, área onde também costuma transitar. Trata-se de “Que você é esse?”, livro rejeitado pela Editora 34, pela parte de seu conteúdo anti-Lula e PT, apresentado como ficção, mas, na verdade, construído sobre a mais concreta realidade vivida pelo autor no período em que transitou pelo rico e fascinante mercado do marketing político, com toda a pompa, desgraça e hipocrisia que rege a vida nesse mundo, principalmente os dois últimos.

Na apresentação, ele é classificado como “ficção política e livro erótico, romance de ideias e texto prospectivo”, um diário da vida do autor, sua visão e relação com o mundo, do mundo do trabalho e da cultura ao mundinho dos amigos e da (ufa!) adorável vagabundagem que recheia a vida dessa gente da publicidade. São 432 páginas que devorei em duas semanas, tentando descobrir a verdadeira identidade de seus instigantes personagens, alguns seguramente conhecidos meus. Amigos não, mas conhecidos sim. Ali estão escancaradamente reconhecíveis Duda Mendonça, João Santana, que eu conhecia como Patinhas, Duda Kertész et caterva. Estariam também Sidônio Palmeira, Carlinhos, Alfredo Vilela e outros contemporâneos de movimento estudantil? Quem seria o sujeito que chegou até a assumir um ministério do governo petista, o hoje deputado Jorge Solla?

Acontece que eu também vim da Bahia. Não como Gil, de cujo berço se origina entre os sertões de Vitória da Conquista e a opulência cultural da Cidade da Bahia nos anos 50 e 60, onde ganhou, no dizer dele mesmo, régua e compasso para se tornar quem se tornou. Da Bahia eu voltei depois dos quatro anos fundamentais na minha formação, tempo em que cursei Jornalismo na UFBa. Não peguei, por assim dizer, a época de ouro que pariu a Tropicália, o samba de Caymmi ou o grande nome do Cinema Novo, Gláuber Rocha. Mas “minha” Salvador era uma capital diversa, rica, a terceira cidade brasileira, onde ainda bebi num restinho de caldo cultural interessante, até que fosse tragada e rendida pelo marketing do turismo e dos carnavais segregadores das cordas,

Minha Salvador se materializava no espaço circunscrito aos limites da antiga EBC, a lendária Escola de Biblioteconomia e Comunicação do Canela e a vivência com os colegas da também tradicional Residência Universitária R1 do Corredor da Vitória, palco de lutas estudantis e da repressão da ditadura. Assim, entre um e outro universo, frequentei festas alternativas, espetáculos, casas de gente doida e criativa e os ambientes politizados do movimento estudantil baiano. Alguns exemplos: as sessões de cinema na sala Walter da Silveira da Biblioteca dos Barris ou no cine Guarany, hoje Gláuber Rocha, na praça Castro Alves, e as montagens vanguardistas do diretor Walter Seixas Junior na Escola de Teatro da UFBa.

Na antiga faculdade de teatro eu vi peças a partir de textos de Gláuber (“Que Viva Gláuber”) e algumas do teatrão de Nelson Rodrigues sob a direção luxuosa de Waltinho, um diretor que fascinou um tabaréu sergipano que só conhecia o “teatro chamado cordel” do Imbuaça de Mariano, Isabel Santos e Valdice Teles, também referência marcante na minha formação. Em frente à escola havia outra atração tão prazerosa, além da nudez daquelas meninas do teatro baiano, o Café Teatro, bar reduto da esquerda estudantil boêmia, artistas, jornalistas e desocupados que faziam daquele pedacinho do Canela um dos cantos mais alegres e luminosos da Cidade do São Salvador.

É o gancho para voltarmos ao meio ambiente descrito por Risério. A Salvador que vivi antecedeu à ascensão da axé music, uma música originada do fortíssimo veio criativo baiano mas que transbordou para a pura mercantilização e a criação de uma cultura em seu entorno: o império da bunda e dos rebolados, das abaixadas nas garrafas, das coreografias erótico-infantis, do culto a uma alegria desenfreada, do baiano malandro incrivelmente feliz. Como na música de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas, os guizos falsos da alegria. Uma operação construída pelas estratégias de marketing da Bahiatursa.

Como estudante, não cheguei perto dessa turma de alto coturno que fez parte do mundo de Risério, tão bem (e mal) retratada em “Que você é esse?”, mas, pelo conhecimento e vivência do período, convivi com alguns deles, em maior ou menor distância. A vida na velha EBC da UFBa promoveu isso, no circuito entre as salas de aula, a cantina de Beré e o legendário flamboyant do pátio, onde assisti, entre outras coisas, uma conversa com Jorge Mautner, em apoio à candidatura de Galvão dos Novos Baianos em 82. Mautner, sozinho com o violão, fez uma gracinha pra gente. Embora não consiga identificar os personagens do livro, imagino que alguns estiveram conosco em salas de aulas, príncipes do trocadilho abobalhado, todos de direita, que odiavam a gente do movimento estudantil.

Alguns fizeram carreira graúda na publicidade e no marketing político, que Risério, chama de eleitoral, cada vez menos político, com suas táticas sujas e ausência total de princípios. Gente que andou pelo Sinjorba, o sindicato dos jornalistas da Bahia, admirados por estudantes como eu, e outros que passaram pelo DCE e UEE, hoje em casa guardados por Deus, contando o vil metal. Um deles, inclusive, foi o responsável pela campanha de Lula na eleição de 2022.

São esses personagens reais, transformados em ficção pela veia literária do poeta Risério, que estão na iluminista Cidade da Bahia da qual lambi um resto de lama criativa. Personagens que seguem protagonistas na passagem para a Bahia festeira e fútil dos dias atuais. O livro vale como ficção, ainda mais se sabemos que tudo aquilo foi capturado nas águas turvas do real. E vale tanto para leitores distantes da cena, onde e quando ela ocorreu, quanto, mais ainda, para observadores privilegiados, como eu, que tive a fortuna de ser, pelo menos, um simples coadjuvante, estudante pobre e periférico ao mundo glamourizado desses magos da publicidade e do marketing.

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Sobre Luciano Correia

Luciano Correia
Jornalista e presidente da Fundação Cultural Cidade de Aracaju (Funcaju).

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