terça-feira, 23/04/2024
Manifestaçao em Brasília Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

A Inconstitucionalidade do Marco Temporal

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Por Gabriel Barros (*)

 

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, promulgou, na quinta-feira (28), o texto que cria legalmente o famigerado marco temporal para o reconhecimento de terras ocupadas por indígenas.

A promulgação vem depois de o Congresso Nacional derrubar, no último dia 14, os vetos feitos pelo presidente Lula (que, diga-se de passagem, foram bastante modestos), ao Projeto de Lei (PL) 2903/2023, no qual  povos originários só devem ter direito a áreas que já ocupassem ou disputassem até 5 de outubro de 1988, data em que a atual Constituição Federal entrou em vigor.

Impende salientar que o STF, em sede de Recurso Extraordinário (RE) 1017365, rejeitou a possibilidade de adotar a data da promulgação da Constituição Federal  como marco temporal para definir a ocupação tradicional da terra pelas comunidades indígenas.

Com a criação de uma lei e tendo em vista a recente decisão do STF, a tendência  é de mais uma judicialização dessa celeuma, uma vez que era previsível que uma eventual derrubada dos vetos pelos parlamentares faria o governo Lula contestar a iniciativa no Supremo Tribunal Federal.

A bancada ruralista, por sua vez, que tem maioria no legislativo, tem dito que uma nova disputa judicial provocaria a aprovação de uma proposta de emenda constitucional (PEC) para dar maior segurança jurídica à tese do marco temporal.

No entanto, é forçoso concluir que em qualquer hipótese estaríamos diante de uma inconstitucionalidade patente, sobretudo diante do ponto de vista material, isto é, o seu conteúdo, seja mediante PEC ou Lei, é uma afronta à Constituição, bem como representa um retrocesso que, inclusive, viola cláusula  pétrea, mais especificamente prevista no artigo 60, § 4º inciso IV, que trata dos direitos e garantias individuais.

Isso acontece porque o princípio da supremacia da Constituição e a consequente rigidez normativa determinam que o procedimento de sua modificação tenha limitações jurídicas constitucionalmente definidas, a exemplo da previsão citada acima.

Conforme assevera J.J  Canotilho, dada a existência de limites formais e materiais, as leis de revisão que não respeitarem esses limites serão respectivamente inconstitucionais sob o ponto de vista formal e material.

Assim como pontua o ministro Gilmar Mendes: “Tais cláusulas de garantia traduzem, em verdade, um esforço do constituinte para assegurar a integridade da Constituição, obstando a que eventuais reformas provoquem a destruição, o enfraquecimento ou impliquem profunda mudança de identidade. (…) Tais cláusulas devem impedir, todavia, não só a supressão da ordem constitucional, mas, também, qualquer reforma que altere os elementos fundamentais de sua identidade histórica”

Importante mencionar a tese fixado pela mais alta Corte do país quando do (RE) 1017365.

Vejamos:

I – A demarcação consiste em procedimento declaratório do direito originário territorial à posse das terras ocupadas tradicionalmente por comunidade indígena;

II – A posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos indígenas, das utilizadas para suas atividades produtivas, das imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e das necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, nos termos do §1º do artigo 231 do texto constitucional;

III – A proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 5 de outubro de 1988 ou da configuração do renitente esbulho, como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição;

IV – Existindo ocupação tradicional indígena ou renitente esbulho contemporâneo à promulgação da Constituição Federal, aplica-se o regime indenizatório relativo às benfeitorias úteis e necessárias, previsto no art. 231, §6º, da CF/88;

V – Ausente ocupação tradicional indígena ao tempo da promulgação da Constituição Federal ou renitente esbulho na data da promulgação da Constituição, são válidos e eficazes, produzindo todos os seus efeitos, os atos e negócios jurídicos perfeitos e a coisa julgada relativos a justo título ou posse de boa-fé das terras de ocupação tradicional indígena, assistindo ao particular direito à justa e prévia indenização das benfeitorias necessárias e úteis, pela União; e quando inviável o reassentamento dos particulares, caberá a eles indenização pela União (com direito de regresso em face do ente federativo que titulou a área) correspondente ao valor da terra nua, paga em dinheiro ou em títulos da dívida agrária, se for do interesse do beneficiário, e processada em autos apartados do procedimento de demarcação, com pagamento imediato da parte incontroversa, garantido o direito de retenção até o pagamento do valor incontroverso, permitidos a autocomposição e o regime do art. 37, §6º da CF;

VI – Descabe indenização em casos já pacificados, decorrentes de terras indígenas já reconhecidas e declaradas em procedimento demarcatório, ressalvados os casos judicializados e em andamento;

VII – É dever da União efetivar o procedimento demarcatório das terras indígenas, sendo admitida a formação de áreas reservadas somente diante da absoluta impossibilidade de concretização da ordem constitucional de demarcação, devendo ser ouvida, em todo caso, a comunidade indígena, buscando-se, se necessário, a autocomposição entre os respectivos entes federativos para a identificação das terras necessárias à formação das áreas reservadas, tendo sempre em vista a busca do interesse público e a paz social, bem como a proporcional compensação às comunidades indígenas (art. 16.4 da Convenção 169 OIT);

VIII – A instauração de procedimento de redimensionamento de terra indígena não é vedada em caso de descumprimento dos elementos contidos no artigo 231 da Constituição da República, por meio de procedimento demarcatório até o prazo de cinco anos da demarcação anterior, sendo necessário comprovar grave e insanável erro na condução do procedimento administrativo ou na definição dos limites da terra indígena, ressalvadas as ações judiciais em curso e os pedidos de revisão já instaurados até a data de conclusão deste julgamento;

IX – O laudo antropológico realizado nos termos do Decreto nº 1.775/1996 é um dos elementos fundamentais para a demonstração da tradicionalidade da ocupação de comunidade indígena determinada, de acordo com seus usos, costumes e tradições, na forma do instrumento normativo citado;

X – As terras de ocupação tradicional indígena são de posse permanente da comunidade, cabendo aos indígenas o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos nelas existentes;

XI – As terras de ocupação tradicional indígena, na qualidade de terras públicas, são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis;

XII – A ocupação tradicional das terras indígenas é compatível com a tutela constitucional ao meio ambiente, sendo assegurados o exercício das atividades tradicionais dos indígenas;

XIII – Os povos indígenas possuem capacidade civil e postulatória, sendo partes legítimas nos processos em que discutidos seus interesses, sem prejuízo, nos termos da lei, da legitimidade concorrente da FUNAI e da intervenção do Ministério Público como fiscal da lei”

Percebam que a tese adotada pelo Tribunal é suficiente para entendermos os evidentes vícios que eventuais leis ou mesmo alterações na Constituição possam causar. Para além das formalidades jurídicas, sempre relevante pontuar o constructo jurídico ideológico que faz com que a luta de um povo por sua existência seja modificada por simples canetadas e “debates” apressados em relação a tão caro direito.

Daí a importância da liberdade de crítica para avançarmos sobre qualquer governo bem como qualquer composição no próprio STF, haja vista que não se pode esperar muito de instituições que violam constantemente direitos fundamentais dos trabalhadores, ou que nos usam de massa de manobra para fotografar um cenário supostamente inclusivo, e que, porém, nos exclui dos cargos que efetivamente tomam as decisões mais importantes e que possuem maior orçamento.

A crítica não pode parar nessa ou naquela instituição ou nesse e naquele governo, pois nunca podemos perder de vista a sociabilidade que permite barbáries e nos petrifica, negando nosso direito de sonhar por um novo horizonte onde possamos usufruir de tudo que produzimos.

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Sobre Gabriel Barros

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(*) Advogado e graduado em Direito Público

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