Por Luciano Correia (*)
Euler Dantas é um jornalista já calejado de redações da Bahia, mas desconhecido na cena cultural sergipana. E o que tem a ver Sergipe, ora direis? É que esse baiano de Cícero Dantas aportou aqui ainda menino para viver, até entrar na faculdade de Jornalismo da UFBa, em Salvador. Em Aracaju, fez amigos, amores e deixa saudade sempre que vem ver os pais e retorna ao seu querido bairro de Santa Tereza, no Rio, onde vive já há alguns pares de anos. Aracaju, portanto, está sempre nos seus planos, dentre os quais se encontrar com este velho colega para traçarmos o ensopado de carneiro do Thales Ferraz.
Conheço Euler desde os primeiros dias do curso de Jornalismo na UFBa, embora de turmas diferentes. Até viajamos juntos de carona uma vez para o Enecom de Fortaleza, lá nos saudosos anos de 1984, num velho ônibus urbano improvisado para levar estudantes da UFPE, do Recife a Fortaleza. A carona terminou nas ruas do Recife antigo e, sabe-se lá como, conseguimos chegar a Aracaju, porto seguro dos dois quebrados estudantes.
Desde que trocou o jornalismo por muitas outras atividades, exercidas uma após outra, e a (sua, especialmente sua) idílica Salvador pelo charme hippie chique de Santa Tereza, continuou batucando letras nos teclados, mas não mais para a urgência dos diários impressos. E foi aos poucos tecendo sua literatura moderna, com cheiros, tons e semitons que fariam a alegria e festa de um Amaral Cavalcante. Euler, sem favor nem exagero, é um sopro raro numa área que respira por aparelhos, de tão carente de bons autores, ou infestada do bolodório identitário em moda, pra fazer business.
De passagem por Aracaju, para os tais amigos, família e o carneiro ensopado, aproveitei sua presença para um papo ligeiro sobre seu primeiro livro, desinventário (um almanaque arqueológico de rememórias), que li com o gosto da boa leitura, evidentemente, e da satisfação de vir de um velho colega de faculdade. Com vocês o baiano-sergipano-carioca Euler Dantas.
LUCIANO – Como foi o processo de maturação desse Desinventário? Você já pensava publicar em forma de livro e foi criando com esse objetivo específico, ou foi o resultado de textos diversos, feitos ao acaso, que você finalmente juntou sob a moldura de um livro?
EULER – Acho que passei a vida prenhe deste livro, sem me dar conta. Escrevê-lo foi como um parto natural, não sem dores excruciantes, mas também com o prazer só alcançável na experiência. Me expresso melhor escrevendo do que falando (Aí você pode avaliar como sou um péssimo orador). Escrevo coisas desde criança, até poemas, um desvio de caráter antigo. O Desinventário começou a tomar corpo quando cacei os escritos guardados no computador, em folhas avulsas, nos rascunhos de cartas, em certas mensagens de WhatsApp… textos que se tornaram o embrião do livro. Depois disso, no outono-inverno de 2024, me recluí voluntariamente e pude usar os dias para contar/recriar histórias em novos textos enquanto bebia café e fumava um cigarro atrás de outro. Foi um exercício distinto em quase tudo do trabalho anterior como repórter e redator, com exceção dos cafés e cigarros.
LUCIANO – O que você traz de sua vida de jornalista durante anos na imprensa baiana, tanto em relação à produção da escrita quanto das experiências de repórter no dia a dia?
EULER – De um lado, a vivência extremamente rica proporcionada pelo torvelinho das redações e das notícias, as amizades preciosas consolidadas desde aquele tempo, um tempo em que ainda havia futuro. De outro (a outra face), o eco da bofetada que a realidade costuma aplicar na bochecha dos idealistas. O “legado” disso no meu escreviver é um tanto difuso e se manifesta através de personagens e situações inspirados naquele mundo extinto. Mas há um abismo entre o estilo jornalístico, fundamentado na concisão, clareza e ética, e as formas dúbias, devaneantes e claramente canalhas da minha literatura, que pode ser definida pelo menos em parte como autoficção. Mas precisaríamos voltar muito mais no tempo para encontrar o solo de onde brotaram as criações…
LUCIANO – Você bebe nas fontes de sua infância no sertão baiano, na juventude em Aracaju e nos anos de faculdade de Comunicação em Salvador. O que é verdade e o que é ficção nessas histórias?
EULER – Hahahaha. Em um discurso na Feira do Livro de Frankfurt, em 2003, já no fim da vida, a pensadora Susan Sontag disse que “literatura é liberdade”. E eu levei a sério essa definição. No Desinventário, foi intencional turvar as fronteiras entre “verdade” e “ficção”, torná-las irreconhecíveis. Mesmo nos contos puramente inventados há indícios biográficos, referências. Em outros, grassa a promiscuidade absoluta entre as duas dimensões. Mas em tudo há um mar de influências: os contos de fadas, as histórias de vaqueiro ouvidas à luz de candeeiro, a música brega, os bang-bangs spaghetti do Cine Santo Antônio, as estradas sem pavimentação, os amores, a solidão de mim mesmo, a estupefação diante das belezas e desgraças que por todo tempo atordoam os meus sentidos, as brigas de rua, os galos de briga, as máquinas de datilografia, minhas quase-mortes, os pesadelos recorrentes, as revistas pornôs suecas, a grande feira, a prece mugida pelo boi durante a sangria no matadouro… Mas, sim, parte expressiva dos textos é fruto das rememórias, seja da infância semirrural no Bom Conselho, a adolescência em uma Aracaju ainda pacata ou os ritos de passagem à vida adulta nos anos da faculdade em Salvador, estas três fases marcantes da minha biografia.
LUCIANO – A lendária antiga Escola de Biblioteconomia e Comunicação da UFBa, no Canela, produziu um caldo de cultura urbana muito interessante naquela quadra dos anos 70 e 80, como o debate de Jorge Mautner, que você cita no livro, no lançamento da candidatura do “novo baiano” Galvão a deputado federal em 1982. Que outras lembranças e influências o curso de jornalismo da UFBa deixou em você?
EULER – Foi imensa em mim a ruptura representada pela EBC e o ambiente universitário em ebulição política nos anos terminais do governo militar. Os conteúdos acadêmicos (um mundo virtualmente infindável de aprendizados), os colegas e professores que povoavam salas e corredores, as festas, os eventos culturais, as pelejas entre as tendências do movimento estudantil, as moças gostosas e descoladas, a maconha sob o Flamboyant, a cantina da Beré onde a cerveja era liberada e o Walter Smetak chegava para almoçar em uma CG amarela, os acampamentos selvagens na Ilha… E o Mautner! A esbórnia competia com os estudos, mas quem nunca curtiu a vida adoidado que atire a primeira pedra! Depois veio a temporada de cinco anos nos jornais em que eu trabalhei como um louco, pulando de redação em redação, antes de jogar tudo pra cima e fugir de moto pelo Brasil.

LUCIANO – Você já vive no Rio há mais de trinta anos, ou melhor, você vive a aura alternativa, ou o que restou dela, no bairro de Santa Teresa. O que você fez nesses anos por lá e de que forma essa vivência entrou nas histórias do Desinventário?
EULER – Costumo dizer que não moro no Rio, e sim em Santa Teresa, o bairro que conseguiu (com a luta dos moradores, sobretudo!) manter vivo e renovado o centenário sistema de bondes em suas ruas. Com os casarões, lendas e ladeiras, é um enclave mágico no coração da cidade, entre a floresta e os espigões da região central. Em Santa Teresa eu casei, tive um filho, montei em sociedade uma empresa de alimentos orgânicos, criei fortes laços de amizade e vivi mais da metade de minha vida. Com a especulação imobiliária e um contínuo processo de gentrificação, “Santa” se tornou um movimentado destino turístico carioca, ainda um bairro charmoso, mas sem os serviços essenciais e sem a vida comunitária de outros tempos, coisas que me fazem falta.
LUCIANO – Por que Desinventário?
EULER – Esse neologismo chegou do nada, depois de outros dois títulos, e se impôs como o corpo no qual habitaria a alma do livro, a sua essência: o redesenho de situações factuais, necessariamente corrompidas pelo tempo e pela memória, a partir da incorporação de outros elementos. O prefixo des é um ente insubordinado, o sujeito “do contra”, aquele que põe as coisas pelo avesso, o opositor, o estraga-prazeres. “Inventário”, apesar de ter um sentido específico no nosso léxico (uma lista detalhada de bens), poderia definir no imaginário moleque do livro alguma traquitana que servisse a delirantes criações em moto perpétuo, talvez a mente torpe de um escritor. Quando prefixo e radical se juntam nesta palavra, formam uma unidade autofágica, iconoclasta e ao mesmo tempo suicida. Por não ser termo de uso corrente, causa estranheza à primeira leitura e por si incomoda, como uma mosca na sopa, uma farpa, uma ideia… Pelo menos foi o que eu desejei.
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