Por Léo Mittaraquis (*)
“Agora que sou velho e que ninguém exige nada de mim, passo com frequência dos cigarros aos bons propósitos e destes novamente aos cigarros. Que significam hoje tais propósitos?”
Italo Svevo, A Consciência de Zeno
Nunca foi proibido fumar na bodega do Adeodato. Desde o tempo de seu pai, o velho Agostinho, o ar por ali sempre teve um leve perfume de fumo e conversa. Quem quisesse queimar seu fumo de rolo — aquele tabaco de feitio antigo, torcido à mão em corda grossa — podia fazê-lo sem cerimônia, do mesmo modo que o outro, fiel ao cachimbo gasto, a transformá-lo num pequeno fagote de brasa. E havia também os mais modernos, que faziam saltar da carteira de Chesterfield — a mesma dos anúncios com James Dean, Rita Hayworth e Frank Sinatra — um cigarro fino, com um gesto estudado, meio de cinema…
Na bodega, bem às costas de Adeodato, as três prateleiras dedicadas aos maços nunca ficavam cheias. Cigarro era mercadoria que, na bodega, se vendia muito, se vendia bem.
A não falhar a memória, a qual, não raro, engasga e rateia, seriam coisa de oito e pouco da noite: Goulart e Rivaldo estavam de papo malandro, enquanto a tripa frita no ponto certo produzi, entredentes, o monótono croc-croc. Interrompido pelos goles de pinga e cerveja.
E, que eu não me perca, como bem alertara o monge beneditino Adso de Melk, já naqueles anos medievos, creio, dos 1300, em marginália, e volte a tomar ciência aqui de que o assunto é cigarro.
Na época em que se deu a história, eu começava a ensaiar meus escritos poéticos, novelísticos. Então, fumar era escrever no ar o que não cabia ainda na folha de papel pautado. Cada cinza que caía, marcava o tempo gasto em melancolia e tentativas de firmar um estilo.
Goulart bebia, comia, conversava e, também, como não poderia deixar de ocorrer, fumava. E, no caso dele, o fumo era, denominado pelo intelectual fumante, “pessoal”.
Outros, aos poucos, chegavam ao estimado recinto: Glauco, pescador; Delmiro, condutor; Silvino, técnico em eletrônica, formado pelo Instituto Universal Brasileiro, o IUB, especialista em rádio de galena, um dos primeiros tipos de rádio receptores da história, inventado nos anos vinte.
Dali em diante, na bodega, não faltava boca fumando: charuto barato, cachimbo ou qualquer outro gesto de fumaça que se prendesse ao ar e ao burburinho de cada grupo ou duplas em volta de uma mesa. Ou, lado a lado, no balcão.
Havia, porém, nisto tudo, sinfonia…
Executava-se uma sinfonia precisa de arrotos, pigarros, risos e falas.
Cada mesa tinha seu ritmo, cada copo tilintava como nota inesperada.
O cheiro de vinho, cerveja, pinga e fritura se misturava à cadência das vozes. Os gestos dos clientes compunham pausas e acentos invisíveis. Recordo de que até o vento da rua, ao entrar, parecia marcar compasso. E naquele caos orquestrado, a vida corria em acordes improvisados.
Em meio àquela bela polifonia se destoava, fruto da bronquite crônica, a tosse rouca, quebrada, e insistente de Amâncio. Cada ataque parecia romper o compasso, como um tímpano desafinado no coração da orquestra.
O som arrastado, cheio de pausas entre os pigarros, chamava atenção sem pedir licença.
As mesas ao redor continuavam absorvendo o choque da dissonância.
A tosse de Amâncio não era apenas doença, mas um contraponto inesperado, quase cruel e poético. E, de algum modo, acrescentava profundidade à melodia caótica do bar.
Sim, tossia intermitentemente, mas mas, também, insistentemente, puxava fumaça do cigarro de palha.
Bem entendido: não havia censura e nem crítica direta, o sentimento era mais de solidariedade… Cientes todos de que nada haveria que fazer.
Foi quando um ainda mais destoante fortíssimo explodiu como um trombetear que não admitia recuo. Atravessou o ar, sacudiu os nervos dos presentes.
E se impôs, a reclamar atenção absoluta.
Dona Perpétua ao centro. Todos nós, em volta, e à distância segura, congelamos respectivos movimentos. Exceto Amâncio, a fumar e a tossir sem trégua. Talvez por saber o que viria. Afinal, a mulher era a esposa dele.
Dona Perpétua avançou alguns passos, o olhar firme atravessando cada rosto como um alerta silencioso.
O burburinho do bar diminuiu, comprimido entre o espanto e a curiosidade.
Até a fumaça do cigarro de Amâncio parecia hesitar no ar, como se aguardasse ordens.
Ela parou diante da mesa, e por um instante tudo se fez pequeno: copos, risos, arrotos, a própria tosse de Amâncio.
Então falou, e a voz, clara e precisa, cortou a confusão: cada palavra era uma nota fortíssima, impossível de ignorar.
E no eco daquele instante, percebemos que nenhuma sinfonia do bar poderia competir com sua presença.
Dona Perpétua ergueu o dedo, não em gesto de ameaça, mas de reprovação contida.
— Amâncio, meu marido — disse, cada sílaba carregada de impaciência —, você continua a fumar como se a tosse não fosse sua sombra constante? Não fosse o alerta da morte que se anuncia?
O bar inteiro pareceu encolher-se diante da reprimenda: até o tilintar dos copos se fez mais tímido.
Ela descreveu, sem levantar a voz, cada risco que ele corria, cada ataque de bronquite que a perturbara nos últimos anos.
Amâncio pigarreou, o cigarro tremendo entre os dedos, como se a brasa, na ponta, hesitante, também sentisse culpa.
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