sábado, 20/04/2024
Genivaldo de Jesus Santos na "câmara de gás" da PRF Foto: Redes sociais

“Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”

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Luiz Thadeu (*)

Que o Brasil seja um país desigual todos sabemos, que a desigualdade esteja aumentando também sabemos; tristemente tomamos conhecimento das atrocidades todas as vezes que chocantes imagens nos chegam pelas redes sociais e TVs.

Na semana passada fomos brindados com mais imagens chocantes, desumanas, desta vez contra um nordestino, sertanejo, pobre, preto, doente, que sofria de esquizofrenia, e estava inclusive com medicamentos nos bolsos de suas surradas vestes. Genivaldo de Jesus Santos – sergipano de 38 anos abordado pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) numa estrada enlameada de Umbaúba, por agentes do Estado, pagos com nossos impostos, à luz do meio-dia. Segundo relatos de transeuntes que assistiram às fortes cenas, capturando tudo com seus celulares, que depois ganharam o mundo, Genivaldo, ao ser parado na blitz, por ordem policial, levantou a camisa, ergueu os braços, mostrando aos agentes não estar armado. Trazia consigo apenas os medicamentos para esquizofrenia que lhe permitiam viver em paz. Testemunhas, inclusive familiares, viram quando Genivaldo foi derrubado à força, na lama, debater-se, ser imobilizado, amarrado e socado no camburão. Com a cabeça, o tronco e parte das pernas enfiados na viatura, as tristes imagens mostram  que os pés e as canelas finas de Genivaldo impediam o fechamento da porta. Por fim, os agentes jogaram spray de pimenta e gás lacrimogêneo no interior do camburão. Lufadas de nuvens tóxicas puderam escapar pelas frestas do porta-malas. No ato de crueldade sem tamanho, Genivaldo morreu, não, foi assassinado em uma câmara de gás que lembra os campos de concentração de Auschwitz-Birkenau, localizados no sul da Polônia, e operados pelo Terceiro Reich e colaboradores nas áreas polonesas anexadas pela Alemanha Nazista, maior símbolo do Holocausto perpetrado pelo nazismo durante a Segunda Guerra Mundial. Estive na Polônia em 2015, e visitei os antigos campos de concentração, lugares  funestos e horripilantes.

O Brasil inteiro tornou-se testemunha desse crime hediondo graças aos vídeos feitos por moradores de Umbaúba, pacato município sergipano de 26 mil habitantes. Fonte: IBGE.

Mas, porque mesmo mataram Genivaldo? Genivaldo teve o azar de ser parado, abordado, humilhado e morto por agente parrudos da PRF, por dirigir uma moto sem capacete perto de sua casa. A moto nem era dele, fora emprestada, só para um curto passeio, que lhe custou a vida. Após abordagem dos policiais assassinos: Genivaldo desceu da moto, colocou as mãos para cima, ergueu a camisa polo, mesmo assim ouviu insultos, foi jogado no chão enlameado. Em seguida os agentes o arremessaram no porta-malas da viatura, onde despejaram gás lacrimogêneo e spray de pimenta. Se isso não for intenção de matar, o que será? O compartimento virou uma câmara de gás, onde Genivaldo se debateu por cerca de 15 minutos até morrer sufocado. Ele deixou mulher e filho de 7 anos.

O Código de Trânsito Brasileiro pune os motociclistas que trafegam sem capacete com multa de R$ 293,47 e suspensão do direito de dirigir. No acostamento da BR-101, essas sanções foram trocadas pela pena de morte instantânea, em rito sumário. Alguma vez algum agente da PRF ou de outra unidade policial cogitou abordar o presidente da República pelas infrações que gosta de cometer país afora, em terra ou mar? Ou um único integrante de suas motociatas? A pergunta é simplória. Mas a brutalidade policial brasileira contra pobres e pretos é gritante.

Genivaldo, a vida que Deus deu a você não era fácil: preto, pobre, esquizofrênico, no sertão nordestino. Você se saiu melhor do que o esperado. Cuidava dos próprios fantasmas, zeloso com seus remédios, fazia tratamento há vinte anos. Casou-se, teve um filho que te amava, mulher e amigos que não escondem o pranto pela tua morte. Maltrataram-no sem motivo, imobilizado; foste cruel e covardemente assassinado. Os teus carrascos, impiedosos, são policiais e considerados homens normais. Não, são pessoas doentes, eles sim, além do país e da sociedade, para os quais não existem remédios! Estamos nos acostumando com a selvageria, achando que isso é normal.

Genivaldo Jesus é o teu nome, e qualquer semelhança não é mera coincidência.

No mesmo dia que Genivaldo de Jesus Santos foi assassinado, completava dois anos da morte do norte-americano George Floyd. Os métodos medievais em pleno século XXI são abomináveis. Às claras. Todo mundo viu. Quem irá deter essa naturalização da barbárie? Estamos condenados a sermos um país onde impera a lei do mais forte ou podemos esperar um basta definitivo contra essas atrocidades?

O Brasil está reduzido a picos de indignação, em intervalos cada vez menores. Está difícil respirar diante da sucessão das barbáries nacionais.

Os policiais rodoviários – Kleber Nascimento Freitas, Paulo Rodolpho Lima Nascimento e William de Barros Noia – foram afastados pela PRF e estão sendo investigados em um procedimento administrativo disciplinar. A sociedade exige que sejam exemplarmente punidos, e que os agentes do Estado respeitem a vida de todos, independentemente de raça, credo ou posição social.

Como na canção do Rappa, “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”.

A barbárie cometida por agentes da PRF não é um caso pontual, mas sistêmico. Nós, como sociedade, não podemos agir como se estivéssemos diante de apenas mais um crime grave. Caso contrário, estaremos definitivamente à beira de um colapso civilizacional no país. Tristemente, nossas desigualdades só aumentam.

 

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(*) Luiz Thadeu Nunes e Silva é engenheiro agrônomo, palestrante, cronista e viajante: o sul-americano mais viajado do mundo com mobilidade reduzida, visitou 143 países em todos os continentes.

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Sobre Luiz Thadeu Nunes

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Eng. Agrônomo, palestrante, cronista e viajante: o latino-americano mais viajado do mundo com mobilidade reduzida, visitou 151 países em todos os continentes da Terra. Membro do IHGM, Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão; ABLAC, Academia Barreirinhense de Letras, Artes e Ciências. Autor do livro “Das muletas fiz asas”. E-mail: luiz.thadeu@uol.com.br

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