Por Acácia Rios (*)
A rua é um fator de vida das cidades, a rua tem alma! (…)
A rua é a transformadora das línguas.
A rua continua matando substantivos,
transformando a significação dos termos,
impondo aos dicionários as palavras que inventa,
criando o calão que é o patrimônio
clássico dos léxicons futuros”.
João do Rio, A alma encantadora das ruas
Chama a minha atenção o encontro entre a avenida João Ribeiro e a rua Sílvio Romero, no bairro Santo Antônio. Esses proeminentes sergipanos de Laranjeiras e Lagarto, respectivamente, foram amigos em vida e continuam juntos na posteridade, em confábulo, quiçás tendo a colina como confidente.
São 90 anos da morte de João Ribeiro e 110 da de Sílvio Romero. Datas redondas que pedem uma reflexão acerca do lugar que ocupam na crítica literária e na historiografia. Vou à página da Academia Brasileira de Letras (ABL), da qual eram membros, mas encontro uma referência apenas à efeméride de João Ribeiro. Estou enganada ou, já quase em dezembro, estas datas passarão em branco?
Recém chegado ao Rio de Janeiro, João Ribeiro confiou a Sílvio Romero a leitura de Idílios modernos, seu primeiro livro de poemas, cuja crítica saiu na Revista Brasileira em 1881. Juntos, publicariam alguns anos depois o Compêndio de História da Literatura Brasileira (1906), pela editora Francisco Alves. Ambos participaram ativamente da vida literária brasileira, contribuindo para o debate em vários campos do conhecimento. Neste texto, porém, vou me restringir ao laranjeirense. Oportunamente me dedicarei a Sílvio Romero.
Multifacetado
João Ribeiro (1860-1934) foi poeta, filólogo, poliglota, tradutor, historiador, gramático, jornalista, pintor, músico, professor e folclorista. Era considerado um gênio por muitos de seus contemporâneos. O historiador e memorialista Brito Broca, em A vida literária no Brasil – 1900 (José Olympio Editora), cita-o inúmeras vezes, demonstrando o seu trânsito entre os demais literatos e intelectuais, os debates e polêmicas nas quais se envolvia (não tantas, porém, quanto Sílvio Romero) e o respeito que se tinha por ele.
Era um classicista que buscava manter-se com a mente aberta para a modernidade. Nem sempre foi uma luta fácil, como se pode observar em sua biografia. No entanto, como gramático e filólogo, defendia uma língua nacional. Foi defensor do Acordo Ortográfico de 1907 encabeçado pela ABL. Não à toa João do Rio dedica-lhe A alma encantadora das ruas. Ambos sabiam muito bem que “a rua é a transformadora das línguas” e que o léxico de Portugal já se distanciava, e muito, do nosso.
Foi ao sair da rua São João que me dei conta do encontro. Com o amigo e fotógrafo Saulo Villela, retorno num sábado à tarde para fazer o registro dos nomes nas placas. Há muito não experimentava a placidez das ruas do centro e da zona norte num dia ‘inútil’, ou seja, num fim de semana. O movimento silencioso (onde estão as pessoas?) das ruas contribui para o ar melancólico que caracteriza a cidade. Sim, Aracaju é melancólica.
O passo seguinte foi ir à Casa de Cultura João Ribeiro, em Laranjeiras, onde estive pela primeira vez quando era universitária. Percorri os seus generosos cômodos e me debrucei sobre uma das seis janelas frontais que dão para uma quase ladeira estreita e caudalosa. Assim como em Aracaju, em que a avenida que tem seu nome está no entorno da rua São João (nasceu no dia 24 de junho, por isso foi batizado com o nome desse santo), também na sua cidade natal, a rua onde nasceu e leva o seu nome está ligada a essa data, tendo sido campeã do concurso de ornamentação dos festejos juninos no ano de 1993.
Com a biografia João Ribeiro, Sempre, de Núbia Marques (Editora da Universidade Federal de Sergipe – Edufs, 1996), em mãos, percorremos a cidade. O que sobressai da sua personalidade, segundo Marques, é ter demonstrado a capacidade de rever as suas opiniões críticas em relação às obras autores que em um primeiro momento foram recepcionadas negativamente por ele. É muito difícil julgar os contemporâneos, pois a crítica carece do distanciamento temporal. Além disso, os sentimentos em relação ao outro podem interferir no julgamento.
Apesar das minhas ressalvas com relação a esse livro, tenho muito carinho pelo trabalho da escritora e pesquisadora Núbia Marques. E também porque o livro passou pela equipe de revisão coordenada por Antônio Carlos Viana, da qual eu fazia parte como estagiária. Na época, a Edufs funcionava na Praça Camerino (atualmente, sedia a 5ª Vara da Justiça Federal), onde também tive o privilégio de integrar a equipe do professor João Costa, de quem tinha sido aluna.
Órfão de pai, João Ribeiro foi educado pelo avô, admirador do escritor português Alexandre Herculano e que também inspirou o jovem em formação. Estudou no Colégio Ateneu e na Faculdade de Medicina de Salvador, mas não concluiu esse curso. Mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se matriculou na Escola Politécnica. Entre outras atividades, foi professor de História Universal do Colégio Pedro II, ao mesmo tempo em que colaborava para diversos jornais (muitas vezes sob os pseudônimos de Xico-Late, Nereu e Rhizophoro) e escrevia gramáticas e livros de história, obras didáticas consideradas best-sellers para a época. A sua percepção da História não era factual, mas científica. Viajou bastante pela Europa, detendo-se durante algum tempo na Alemanha, onde reforçou a sua ligação com a cultura germânica.
O escritor Humberto de Campos, de quem falei na minha última coluna, cujo título é “Amizades vegetais – Humberto de Campos e seu amigo cajueiro”, quando da sua morte em 1934, referiu-se a ele de maneira muito afetuosa: “Com João Ribeiro caiu o jequitibá do sertão”. De árvores o autor maranhense entendia: o jequitibá é forte, gigante, resistente e longevo. Ironicamente, João Ribeiro morreu na rua da Laranjeiras, no Rio de Janeiro.
Subimos a colina do Santo Antônio. Ali, onde a cidade começou, podemos ver as transformações da paisagem, alteradas sobretudo pela ponte Aracaju-Barra. Olho para o centro e de lá se destacam, quase se deslocando do chão, o Maria Feliciana. Pouco depois, o edifício fantasma do INSS. Para além destes, muitos prédios erguidos ao longe. A cidade, porém, continua predominantemente horizontal. Um vento sussurrante chega à colina quebrando o silêncio daquela tarde.
Fato: temo em me repetir, ser enfadonho, contudo, sou levado pelo encantamento, mais uma vez, ao ler o artigo da pesquisadora memorialista e querida amiga Acácia Rios.
Em “João Ribeiro e Sílvio Romero: dois gigantes sergipanos e suas efemérides”, Rios revisita época de ouro, em termos de exercício da alta intelectualidade.
Este artigo, na minha humilde opinião, deve ser considerado documento a ser preservado para estudos futuros.
Não só por Rios ter comentado figuras tão proeminentes. Mas, também, pela forma que o fez. Com elegância e pena segura disse sobre nomes e lugares. Descreveu o clima bucólico duma tarde inútil. Deixou-se tomar pelos fantasmas da tradição ao visitar a casa de João Ribeiro.
Produções cuidadosas como esta são antídotos contra o esquecimento, vale dizer, contra o apagar de importantes trechos da História.
Vejo, em tempos adiante, porém não tão longínquos, um belo livro de crônicas sendo publicado.