sexta-feira, 26/04/2024
O pequeno Jão e seu repasto totalmente fora das etiquetas

As dores do mundo em mim

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Luciano Correia (*)

 

A passagem do tempo tem me feito mal, e isso se manifesta em mim numa situação de ansiedade permanente, medos e incertezas talvez sentidos numa medida exagerada. Vim do mundo da militância política, do movimento estudantil e dos partidos de esquerda onde, não raro, as manifestações de solidariedade e empatia ou não existiam, ou aconteciam como farsa. Sabe aquelas imagens clássicas de políticos de esquerda passando a mão na cabeça de meninos da periferia ou se comprazendo dos sofrimentos do chamado povo? Pois quase tudo era teatro. Já no ambiente da direita conservadora, nem esse teatro simbólico. Ali é pau puro, do pescoço pra baixo.

Salvo raríssimas exceções aqui ou acolá, continuo pensando o mesmo de figurões de toda ordem, não só os públicos, mas também, e principalmente, dos que estão fora do poder público. Mas o tempo resolveu me castigar enchendo de dores esse peito onde batia um coração, que hoje só apanha. Se eu disser que a chegada de um pobre e abandonado gato em minha vida, fruto de uma algaravia de bichanos na minha porta, há exatos onze anos, mudou minha vida, vão dizer que estou falando besteira. E pode ser, a depender de quem vê a situação.

O tal gato, o intrépido Tom de tanto amor e patifarias, com farta literatura registrada nas redes, me ensinou um sentimento que eu nem sabia o que significava: a compaixão, essa palavra que a gente lia nos livros, mas não tinha uma dimensão exata na realidade. Compaixão pra mim era sinônimo de pena, o que não é o caso. Esse sentimento tão caro ao mundo, e ao mundo de onde eu vinha, começa pela simples atitude de se colocar no lugar do outro, entre outras características. A partir de Tom, comecei a sofrer as dores dos gatos abandonados e de outros animais que penam nas mãos da crueldade humana.

A esse sentimento veio se somando, em velocidade assombrosa, minha identificação com o sofrimento de crianças e velhos; as crianças primeiro, por serem indefesas. Aquele sentimento de angústia que bate, no conforto do meu quarto numa noite de chuva, ao saber que milhões, bilhões de pequenos dormem ao relento, com fome de comida e, quase sempre, de amor. E nem precisa viajar nossa condolência para os longínquos Afeganistão do Talibã ou Marrocos dos terremotos. Nosso Brasil zil zil é pródigo nisso. Basta sair às ruas de qualquer cidade, do Oiapoque ao Chuí e blá blá blá. As ruas brasileiras, e nas noites mais ainda, são um espetáculo de sofrimento e selvageria.

Tudo isso vem a propósito da carnificina que ora varre do mapa o território de Gaza, depois dos ataques brutais do Hamas em Israel. Aprendi minha solidariedade à causa palestina no antigo jornal Pasquim, numa época em que a imprensa brasileira ignorava a pauta estado Palestino, com jornalistas como Fausto Wolff, autor de um livrinho oportunamente chamado “Os palestinos – judeus da 3a. Guerra Mundial”, no qual ele descreve os horrores do massacre de Sabra e Chatila, no ano de 1982 em Beirute. De lá pra cá, só piorou, com os palestinos vagando pelo mundo, como os judeus por séculos e séculos. Num mundo sem pátria, ou mais recentemente espremidos nas faixas de Gaza e Cisjordânia, sofrem as mesmas dores dos judeus na terrível 2a. Guerra.

O terror no Oriente Médio a grande mídia chama de “guerra entre Hamas e Israel”, como se os dois lados estivessem equilibrados numa disputa. Encerrados os ataques covardes do Hamas em Israel, aí o jogo é de um contra ninguém, como se diz no futebol, linha contra defesa. Os terroristas do Hamas, com sua frieza escrota em nome de Alá, se escondem em túneis inacessíveis, inclusive aos palestinos, e deixam inocentes serem massacrados sob bombas, crianças despedaçadas, crianças órfãs com suas vidas interrompidas para sempre.

Às vezes esse ateu comovido pensa que o melhor mesmo é a destruição final, como preconizou Nostradamus, naquele livro cheio de coincidências terríveis. Às vezes penso que, talvez, quanto pior, melhor, pra interromper tanto sofrimento com o castigo de todos. Penso, não: pensava. Desde que botei no mundo, há oito meses, o pequeno e também intrépido João, o Jão Cabeça Quente, Berro Grosso do Mosqueiro, já nem tenho direito de pedir fogo no circo. Que os que creem em Jesus ou Jeová, em Kardec ou nas divindades de Oxum, Oxóssi ou Oxalá rezem pelas minhas dores e pelo futuro de Jão. E os de Alá também, claro. Isto, se os degoladores de crianças, considerarem que Alá teria algum tempo e atenção para com um pobre ateu pessimista dos trópicos americanos.

Mídia, Cultura e Ebulições
25 25America/Fortaleza abril 25America/Fortaleza 2024Compartilhe: Por Luciano Correia (*)   jornalista Aparício Torelly, o célebre Barão de Itararé, dizia que de onde se espera é que não sai nada mesmo. Isso também pode ser dito de outra forma: aquilo que já começa errado, só pode terminar errado. Essa semana nos brindou com uma dessas peças produzidas para enriquecer nosso estoque de grandes bobagens, o famoso Festival de Besteiras que Assola o País, o Febeapá de Sérgio Porto, também conhecido por Stanislaw Ponte Preta. A pérola saiu aqui do lado, em Pernambuco, quando o presidente do TJ local, Ricardo Paes Barreto anunciou a implantação de uma Calçada da Fama, à imagem e semelhança daquela via glamourosa que eternizou as estrelas de Hollywood numa calçada de Los Angeles. Fiquei pensando como uma genialidade dessas consegue prosperar numa esfera tão sofisticada quanto a cabeça de um poder importantíssimo, sério, com tantas atribuições e desafios a cumprir na sua missão. Não sei se o desafortunado desembargador (desafortunado de bom senso, se me entendem, porque de resto…) consultou assessores sobre a conveniência de realizar seu projeto, quiçá saiu da cabeça de outra pessoa, um colega de toga, um publicitário em busca de uma causa e de 30 dinheiros. Já podíamos ver a comoção dos visitantes do mais novo ponto turístico do Nordeste diante das mãozinhas das vossas excelências. “Olha que forte a mão do doutor José dos Santos, de onde saíram tantas sentenças históricas”. E ainda: “Essas mãozinhas de doutor Antônio Silva bateram o martelo contra bandidos e salafrários, todos postos para ver o sol quadrado nas instalações de um xilindró”. Uma mais taradinha, quase suspirando: “Olha que mão grande tinha o doutor João. Imagino como era gostoso receber seus carinhos”. Mas isso nem importa tanto. O espantoso é saber que a ideia, entre sua concepção no cérebro do criador e o anúncio da implantação, correu trecho entre os burocratas que corporificam a inquebrantável cadeia dos trâmites no serviço público. É incrível pensar que não houve um mané qualquer, ou alguém mais crítico, com a coragem de avisar que aquilo ia dar… em merda, numa monumental cagada, data vênia. A extraordinária figura dos assessores. Esses, como as coisas e os seres, que podem pertencer aos reinos animal, vegetal ou mineral, se dividem em várias categorias. Há os Aspone, o sujeito que, como diz o nome, faz porra nenhuma em nenhum lugar. Só comparece mesmo na folha de pagamento. Há assessores capazes, mas se melindram de corrigir seus superiores. Há os covardes, que jamais vão contrariar uma ideia vinda do andar de cima. E há os bajuladores contumazes, que turbinam a ideia, botam pilha diante do seu autor, buscando acumular mais pontos nas milhagens de um puxa saco e achar um novo meio de agradá-lo. No caso do pobre presidente do TJ pernambucano, nenhum assessor ou amigo se ergueu contra a consumação de uma verdadeira ideia de jerico. Ele, por seu turno, desligou o desconfiômetro durante toda a gestação de sua cria e ignorou os apelos do seu anjo da guarda. O resultado foi o que vimos: a calçada, que já estava em execução, e vai custar alguns trocados ao rico povo pernambucano, foi abortada como uma dessas coisas que jamais deveria ter ido além das elucubrações de um magistrado em busca de uma causa. Uma diarreia mental para embotar a grandeza e o espírito do bravo e querido Pernambuco.   Compartilhe: [...] Saiba mais...
11 11America/Fortaleza abril 11America/Fortaleza 2024Compartilhe: Por Luciano Correia (*)   e vez em quando, a morte de uma pessoa nos impacta e nos impõe a constatação de que estamos cada vez mais pobres de grandes homens e mulheres. Ziraldo é o mais recente dos desaparecidos que nos traz essa sensação. Eu era um garoto que amava a música e a cultura de forma geral e começava a me interessar por política. Foi quando ingressei no curso de Engenharia Química da UFS, aos 18 anos. Logo nos primeiros meses entrei para o movimento estudantil e o Diretório Acadêmico se tornou minha segunda casa. Foi onde entrei em contato com outros discos maravilhosos, autores e livros, e com o semanário Pasquim. O Pasquim foi o esteio de toda uma geração crítica, aliás, mais que isso, de gente de todas as áreas que na época resistia à ditadura, razão pela qual sofreu sucessivas represálias e levou à prisão alguns dos seus colaboradores. O Pasquim fazia o jornalismo que os jornalões não tinham peito ou interesse em fazer. Por isso, renovou a linguagem dos jornais impressos, influenciando colunas e editorias a serem mais vibrantes, menos chatos e mais independentes em relação ao poder político. E era um esculacho só, do início ao fim. Os militares e seus serviçais jamais conseguiram turvar o excelente bom humor do jornal em qualquer situação. O Pasquim era informação refinada, feita por colaboradores de altíssima qualidade, com muitas fotos, cartuns e entrevistas absolutamente geniais. Ali conheci e me apaixonei de imediato pelo texto literário de Fausto Wolf, me encantei com Paulo Francis e Ivan Lessa e curti as tirinhas de Henfil. Nunca esqueço de uma entrevista com Elomar, ainda na década de 1980, uma verdadeira tese sobre nossa culta e bela língua portuguesa. E de outra em particular, com o antropólogo Nunes Pereira, uma das figuras mais geniais da cultura brasileira, infelizmente ofuscado pelos holofotes que só viram Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro. No centro e no turbilhão desse luminoso oásis na história da imprensa brasileira, a mão forte e bem humorada de Ziraldo e Jaguar, fazendo arte também nas edições semanais, mas cuidando, sobretudo, na manutenção do sonho. O velho Pasca sobreviveu até quando pôde, ou até quando foi possível, numa sociedade já livre da ditadura, mais aberta e com muitos novos atores emergindo na cena miditática. Calhou também que o tempo chegou para seus criadores. No caso de Ziraldo, além do Pasquim, trilhou desde cedo outros caminhos em revistas da grande imprensa, publicação de quadrinhos e de livros de prosa. Fui entrevistá-lo em Aracaju quando comandei um programa na extinta TV Caju, um canal por assinatura que desapareceu sem que nenhum intelectual, ou, vá lá, um reles jornalista, tenha acusado seu lamentável desaparecimento. Sempre fui avesso a paparicos com celebridades – já entrevistei vários artistas e três presidentes da República, sem sofrer do complexo de vira-latas. Mas não consegui reagir ao irresistível encanto pessoal de Ziraldo, uma figura brilhante, afetuosa, de inteligência rara e rápida. Ziraldo foi durante toda a vida, a exemplo de Millôr Fernandes, um grande ganhador de dinheiro, um homem que sempre soube dar seu preço e cobrá-lo sem concessões. E era ao mesmo tempo essa figura iluminada, como dizem alguns, uma pessoa espiritualizada. Talvez por isso tenha desde cedo compreendido a linguagem das crianças, criando personagens e fazendo histórias, com uma ternura que poucos poetas tradicionais alcançaram. Dentro desse oceano de obras infantis, do Menino Maluquinho ao Flicts, a invenção de uma cor, uma em particular me comoveu: o romance Vito Grandam, a comovente história de um sobrinho cujo herói é um tio um pouco mais velho. O tio já se encaminha para uma idade adulta, mas vive as últimas aventuras de uma criança fabulosa, cheia de histórias, estripulias e sonhos. Quando li, fiquei pensando como um homem já de meia idade, jornalista calejado pela perseguição da ditadura, conseguiu entrar daquela forma no universo psíquico e lúdico de duas crianças, criando uma coisa tão bela e simples ao mesmo tempo. Certamente foi por essas qualidades de Ziraldo, essa capacidade de ser sincero e ir tão fundo em tudo o que realizou, que fez a vida lhe soar como algo leve, sem mágoas guardadas e com uma capacidade incrível de extrair poesia das coisas banais do cotidiano. Para uma pessoa assim, até a perseguida (e difícil) arte de ganhar dinheiro vem na gravidade, sem nunca ter sido uma obsessão. No fim, nem importa muito, porque as coisas materiais, para gente assim, nunca são as primeiras coisas, sobretudo, como dizia Pessoa, quando a alma não é pequena. E a alma de Ziraldo era do tamanho do mundo. Compartilhe: [...] Saiba mais...
4 04America/Fortaleza abril 04America/Fortaleza 2024Compartilhe: Por Luciano Correia (*)   uando contei para um amigo que minha mulher estava grávida, ele vaticinou: “Você vai rejuvenescer”. Não duvidei, apesar de que me assaltavam as inseguranças e incertezas decorrentes de ser pai depois dos 60, num mundo tão intoxicado, de retrocessos nas condições de vida, de guerras com risco de levar ao Armagedon e com a natureza pegando fogo, devolvendo toda sorte de violências cometidas desde que o homem foi avançando em cada conquista, do domínio do fogo à descoberta da roda, num crescendo até chegar nos perigosos dias atuais. Ouvia de gente mais velha uma queixa constante pelas perdas sucessivas de parentes e amigos, restando um vazio melancólico, a perda das ilusões e das utopias. Não sei se eles pensavam assim, mas comigo essa impressão chegou cedo. Aos 28 perdi um precioso amigo, Fernando Sávio, referência pessoal e literária que se considerava, como dizia ele, “um pai profissional”, parceiro de farras e infinitas e maravilhosas histórias. Depois veio Chico Mocó, um amigo irmão, genial, uma espécie de Nelson Rodrigues da crônica oral, que deixou este mundo antes dos 50. A partir daí, foi uma enfieira de grandes amigos, um atrás do outro. Alguns que imaginei insubstituíveis. E, de fato, são. Para escurecer ainda mais o cenário já desalentador, há a deterioração das amizades que ficam, pelos motivos mais diferentes, mas sempre embalada nessa aura de refregas, agressões, ironias e toda sorte de estranhamentos que a gente jamais esperaria vindos de pessoas queridas. Dos demais, dessa juventude cuja bandeira de vida é o “tudo já”, de todos os direitos e quase nenhum dever, a gente não esperava nada mesmo. É assustador ver que essa onda belicosa que rege as relações atuais, sobretudo no pantanoso terreno virtual, também contaminou nossos velhos e sábios amigos. Há que descontar, nesse inventário de perdas, aquelas que não resistiram à fadiga, conceito vindo da engenharia que denota envelhecimento, obsolescência e morte. De fato, algumas dessas amizades construídas com muita lógica e esmero em épocas remotas, relações que nos pareciam duradouras, foram perdendo o sentido, o interesse de uma pela outra. Como num casamento: basta que um não queira, morreu Maria Preá. Mas esse não é um processo indolor, que se dê com naturalidade e não deixe de acionar um certo saudosismo das coisas incríveis que vivemos com essas pessoas: conversas, viagens, bebedeiras e – claro – as incontáveis refregas. Desde que meu amigo falou do rejuvenescimento que o pequeno João traria para a minha vida, fiquei pensando em como isso deveria se materializar. Finalmente eu ficaria mais magro, pra calçar os sapatos com alguma dignidade, sem a obstrução de um infame calombo? Encerraria minha longuíssima carreira de bebedor, de tão nefasta que tem se manifestado nas décadas mais recentes? Tomaria vergonha e finalmente entraria numa dessas academias de ginástica para repor músculos perdidos em anos de inércia? As perguntas fundamentais nunca têm resposta, sejam elas trivialidades como essas ou inquietações existenciais mais profundas. Afinal, qual a chave do que é certo ou errado? Onde está o roteiro das coisas certas? É como imaginar que haveria um hipotético manual de instruções para a vida. Tudo é acaso e circunstância, já disseram. Talvez eu comece a tomar algumas providências, para meu bem e para que meu bebê tenha um pai por alguns anos, mas é fato que o simples compromisso de ajudar a criá-lo, de ter que estar próximo o máximo possível, já configura o cenário de um mundo novo para mim. Com as perdas que tive que aceitar, mais os distanciamentos impostos por amigos ainda vivos e, pasmem, de parentes, a chegada do João me flagra numa situação de disponibilidade, tempo e coração dispostos a construir com essa nova pessoa em meu mundo uma relação, talvez, menos propícia aos defeitos das outras, ou, pelo menos, livre das intoxicações que regem as sociabilidades na quadra atual. Na realidade, vejo que meu velho mundo, por tudo o que apresentei como causas e sintomas, foi ficando pra trás, sendo ocupado cada vez mais pelo mundo mágico de Jão Cabeça Quente, o Quebra-Tudo, o Berro Grosso que diariamente liga no automático às 5 da manhã e só desliga sabe-se lá que hora da noite.. O primeiro e maravilhoso ganho desse novo universo que se descortina é a minimização do mundo velho, suas certezas, verdades e mazelas. E, junto com a perda de importância das coisas, a das pessoas também, ou melhor, daquelas que as dobras do tempo tornaram irrelevantes ou as que fizeram questão de nos fustigar com algum ataque ou desprezo. No nosso filme do passado, essas imagens já não invocam boas experiências, despachando personagens dessas vivências para o limbo e esquecimento. Paralelamente, a chegada de uma pessoa por quem tenho total responsabilidade, e que terei de cuidar até quando for possível na extensão dos meus dias, traz de forma natural uma abertura de novos mundos, uma fantástica luminosidade sobre o banal cotidiano, minutos mágicos que valem, justamente, pela beleza da simplicidade. Compartilhe: [...] Saiba mais...
14 14America/Fortaleza março 14America/Fortaleza 2024Compartilhe: Por Luciano Correia   A Igreja Católica em Sergipe recebeu finalmente seu novo arcebispo. Já não era sem tempo, afinal, depois de alguns meses de vácuo total na liderança dessa secular instituição. Isto sem falar no ocaso provocado pela pior gestão de toda sua história, sob o comando do ex-arcebispo Dom João José Costa, marcada pela incompetência e desmandos na reforma do principal templo religioso do estado, a Catedral Metropolitana de Aracaju, até hoje inacabada. Acuado por todos os lados, por fogo interno e externo, o ex-arcebispo foi tragado pelas próprias contradições. Por um princípio da Física e da política, aqui estendido à religião, todo vácuo tende a ser ocupado. E foi. Vencido pelas críticas e denúncias relacionadas com a obra da catedral, o então chefe da Igreja permaneceu a maior parte da sua gestão na defensiva, na proporção em que outros sacerdotes subordinados ao seu comando desenvolveram bem sucedidas carreiras solo, pelo menos no campo midiático. Uns estrelaram programas de rádio, outros eram os donos da “hora da Ave Maria”, missas teatrais no melhor estilo pop. Aqui não vai nenhuma crítica ao desejo de líderes religiosos almejarem o status de celebridades, afinal, no atual mercado (ops!) religioso, quem não vende suas garrafas, não monta palanque para os fiéis. O tamanho do rebanho é proporcional à relevância com que cada igreja ou terreiro se afirma na sociedade. Reconheço que por trás de minhas observações talvez se esconda alguma má vontade com o desempenho medíocre do primeiro e segundo escalões da Santa Madre Iglesia em terras sergipanas, sobretudo quando lembro do imaginário construído na minha infância e juventude pelo desempenho de Dom Luciano Cabral Duarte. Dom Luciano, chamado por católicos sergipanos de “O Pastor”, foi um homem extremamente culto, único sergipano que alcançou a proeza de ser colunista semanal de um jornal de alcance nacional, a Folha de S. Paulo, um intelectual refinado, respeitado no país inteiro. Embora conservador, desenvolveu na região do baixo São Francisco um projeto (acreditem!) de reforma agrária. Eu mesmo, quando trabalhava no jornal Tribuna da Bahia, fui verificar in loco a dimensão desse projeto e publiquei matéria de página inteira no periódico baiano. Além de seu trabalho pastoral, foi um empreendedor extremamente competente, transformando a Rádio Cultura de Sergipe na emissora mais ouvida, com uma programação eclética, equilibrando jornalismo, música, variedades, cobertura esportiva e o trabalho evangelizador da instituição no estado. Papai não perdia sua célebre “A Hora Católica”, um sermão dominical que, mesmo para um menino ainda pouco interessado nas coisas do espírito, soava inteligível e interessante. Sem falar no exímio domínio da linguagem radiofônica, com uma voz grave, belíssima, uma das mais belas vozes que passaram pelo rádio sergipano. Nunca fui de igrejas, nem de religião, mas carreguei com orgulho o mesmo nome do pastor Dom Luciano, escolha de Papai para seu primogênito. Mais recentemente, conforme contei aqui no portal Só Sergipe (O batismo de João), tentei batizar meu filho João na única igreja que não se encontrava em recesso no final do ano, período em que os padrinhos, que moram na Suíça, estariam por aqui. Consegui até um padre que se dispôs a fazer a celebração, mas fui informado que o ato não poderia ser consumado, pois minha querida sobrinha Carol e seu marido Pierre não são casados no religioso, apenas no civil. Já ouvi de várias pessoas que isso não é regra geral e que pode ser flexibilizada conforme a vontade do padre celebrador, o que, no meu caso, não ocorreu. Mas não quis prosseguir com a polêmica. Para mim, com toda a honestidade da alma, não tenho dúvidas de que, ao perder a ovelha Jão Cabeça Quente, quem mais perdeu foi a Santa Madre. Aproveitei o ensejo, então, para encerrar minha interlocução com as celebridades eclesiásticas em questão. A chegada de novo comandante, quem sabe um pastor, como o saudoso Dom Luciano, talvez para poder trazer o alento às ovelhas abandonadas pelo circo midiático dos padres marqueteiros. Compartilhe: [...] Saiba mais...
22 22America/Fortaleza fevereiro 22America/Fortaleza 2024Compartilhe: Luciano Correia (*)   uas boas histórias contadas por um dos melhores contadores de histórias da imprensa, o jornalista baiano Sebastião Nery, filho de Jaguaquara, Bahia, aqui perto da gente. Em 1928, pouco antes da Revolução de 30, os conspiradores se articulavam dentro e fora do país. Oscar Pedroso Horta, jornalista do Diário da Noite, depois Estado de S. Paulo, faz uma perigosa viagem de monomotor de Santos a Porto Alegre e depois a Montevidéu, para levar uma encomenda de alguns mapas estratégicos para o movimento. Foi a pedido de Siqueira Campos, ele mesmo, o do movimento tenentista, herói do Forte de Copacabana e membro da Coluna Prestes, esse que dá nome a um importante bairro de Aracaju. Deveria entregar os tais mapas a Prestes, exilado no Uruguai. E agora é ele, Pedroso Horta, quem conta, a Sebastião Nery, no seu livro “Ninguém me contou, Eu vi”. Ainda do mesmo livro, conta Nery, de uma entrevista com Hélio Fernandes, da lendária Tribuna da Imprensa, do Rio de Janeiro. O irmão de Millôr conta que Golbery, o diabólico general que encantava até gente de esquerda (Glauber Rocha o chamou de gênio de raça, certa vez), era muito amigo de Carlos Lacerda. Mas brigaram no episódio do movimento para não dar posse ao presidente João Goulart. Jango, como se sabe, era o vice de Jânio, o tresloucado que renunciou pensando que o povo ia chamá-lo de volta. Como isso não se deu, e Goulart era temido pelos militares + UDN e a totalidade da burguesia nacional, começou uma conspiração para não permitir a posse de Jango, que, no dia da renúncia do presidente, estava em viagem à China. Como divergissem nas estratégias desse outro golpe, de amigos fraternos viraram inimigos figadais. Diz Hélio Fernandes, sobre o tal gênio da raça:   Compartilhe: [...] Saiba mais...
25 25America/Fortaleza janeiro 25America/Fortaleza 2024Compartilhe: Por Luciano Correia (*)   um dos programas que vejo no YouTube, o escritor Marcelo Mirisola faz um depoimento demolidor sobre o estado da arte da literatura, apontando para uma terrível conclusão: nessa quadra atual ela caminha apressadamente para a irrelevância. Quem fala isso não é um Zé qualquer, mas um nome bastante festejado nos caldeirões mais efervescentes da literatura brasileira, apesar de sustentar uma posição de maldito, uma espécie de outsider no mundinho bostífero das celebridades literárias que infestam as Flips da vida. E as Flips, como se sabe, tornaram-se quermesses comerciais para gozo & grana dos homens de marketing, das editoras puramente preocupadas em vender, vender e ponto final. Porque a literatura bruta, esteio da produção criativa das grandes narrativas, essa mesma corre em outros lugares, paralelo ao teatro bufão dessas feiras. Sim, há outra patacoada muito mais daninha à literatura: são as academias de letras que pululam em todos os cantos, como pragas, cumprindo uma missão justamente contrária ao que se propõe, ou seja, de promover a produção literária e, sobretudo, desenvolver políticas de incentivo à criação artística, de renovação das linguagens, valorização do livro etc. Em vez disso, esses ridículos clubes de comedores de empada, no dizer de Amaral Cavalcante, funcionam como túmulo da boa literatura, com sua cafonice e seu bolor incrustados nas batas de seus pretensiosos acadêmicos. Este longevo escrevinhador de crônicas pede desculpas por ter cedido ao falso culto literário e ter entrado em uma delas, na cidade onde não nasci, mas me criei e até hoje mantenho laços profundos. De Itabaiana me interessa tudo, a começar pela minha maior paixão entre as paixões de um homem, a Associação Olímpica de Itabaiana. De sua vetusta academia não quero nem saber, e fiquem à vontade os que se arvorarem a propor minha expulsão. No meu caso, não fui parar lá por vaidade ou pelo brilho efêmero de seus saraus, mas atendendo ao apelo de um velho amigo, o historiador e escritor Vladimir Souza Carvalho, este sim, autor de fôlego, inventivo, um dos últimos na galeria dos grandes de Sergipe D’El Rey. Voltando a Mirisola, cujos livros leio desde o final dos anos noventa, além de sua literatura às vezes ácida, ele também incorpora o papel de um encrenqueiro nato, com sua esculhambação e desprezo por gente como Caetano Veloso, Paulo Coelho e a própria Flip de Paraty, cuja edição de 2006 contou com sua apreciação de “escritor convidado”, um relato cáustico publicado na internet, porque o jornal que encomendara o texto, o Zero Hora de Porto Alegre, roeu a corda e se acovardou. Claro que essa atitude típica de franco atirador vende livros e rende bons lucros, sobretudo. Mirisola não joga para todos, mas para a plateia dele, da qual faço parte, mas sem o alarde dos macacos de auditório. Mas o que menos importa aqui é saber se ele age por marketing pessoal ou não. Eu nem creio nisso. O relevante é sua visão sombria sobre os rumos da literatura, tragada pela onda comercial e banalizadora do mercado atual, despejando nas prateleiras títulos baseados em temas, formatos e linguagens pasteurizados. Isso sem falar na farsa das autoajudas e, mais recentemente, da onda politicamente correta e dos identitários, implantando uma reducionista política de cotas em tudo, cerceando abordagens que destoam de suas cartilhas e, com isso, incorrendo em novas formas de fascismo. Que não deixemos de lembrar em cada artigo: a ação deletéria das bolhas, o ataque implacável e violento à figura do outro, a intolerância com as diferenças, isto não são propriedades da praga bolsonarista, mas também de uma certa esquerda que trocou as conquistas clássicas e a luta por justiça social pela fragmentação, pelas causas individuais e específicas em detrimento do todo, da totalidade, da busca de consensos. Num ambiente tão polarizado e patrulhado pelas minicertezas de cada facção, sobra para a criatividade artística, com a literatura sendo uma das primeiras vítimas. Contraditoriamente, justo no momento em que a humanidade dispõe de ferramentas que radicalizam as trocas de conteúdos, o mundo sofre um lastimável empobrecimento cultural, daí o alerta de Marcelo Mirisola. No andar das coisas, leitor de livros vai se tornando um personagem esquisito, de hábitos estranhos, um fora de moda deslocado do seu tempo. Trata-se do mesmo fenômeno que gradativamente vem precarizando o jornalismo e substituindo-o pelo vale tudo das redes midiáticas, que são tudo, menos sociais. Os jornais desapareceram no mundo inteiro e restam poucas empresas resistindo na medida do possível, após uma drástica redução do número de assinantes e de receitas publicitárias. O mesmo com as revistas. A própria radiodifusão, tão senhoras de si até ontem, com poder de erguer e destruir governos, definha entre os públicos mais jovens. Um teste rápido: quem, dessas novas gerações, ainda assiste a telenovelas? Programas de rádio? Enfim, sós: seus apresentadores sensacionalistas e seus espetáculos, cada vez mais sem público. Com a erosão desse velho mundo analógico, o valor da cultura é ressignificado, quando não banido. Ser intelectual não diz mais nada para essa gente que domina a esfera pública, nos seus diferentes níveis, nem confere mais certo charme aos que pousavam à frente de estantes. Os governantes, antes tão ciosos em manter pelo menos a aparência alguma erudição verbal, hoje só pensam nas selfies junto às multidões que lotam suas micaretas o ano todo. É desse mundo que Mirisola desembarca para sua literatura insular. E do qual eu também pretendo descer.   Compartilhe: [...] Saiba mais...
23 23America/Fortaleza dezembro 23America/Fortaleza 2023Compartilhe: Por Luciano Correia (*)   Vaticano aprovou a bênção a casais do mesmo sexo. Uma mudança radical no anacronismo e intransigência da velha Madre Iglesia? Nem tanto. Num contexto em que o teatro midiático é mais importante do que a essência das decisões, a jogada de marketing põe a Igreja em sintonia com o frisson de um mundo pautado pelas redes digitais. O Papa Francisco é, sem dúvidas, o mais progressista e tolerante dos últimos tempos, mas não deixa de flertar com o sucesso na opinião pública. O Papa, agora sim, é pop. Na Folha de S. Paulo dessa sexta, o colunista Marcos Augusto Gonçalves diz que a iniciativa não vai além de uma passada de pano na hipocrisia reinante na instituição, marcada ao longo da história, segundo ele, por acusações de sodomia e incesto, dentre outras que pontuam a alegre vida sexual do papado e sacerdotes no mundo inteiro. Os registros estão aí, disponíveis na mídia e persistentes até os dias atuais. Volta e meia nos deparamos com um novo e rumoroso escândalo envolvendo padres, bispos e religiosos de maior coturno em situações de abuso a menores, principalmente. No Canadá, desde o século 19 até praticamente o dia de ontem, uma monstruosidade foi perpetrada pela organização, sem qualquer condenação ou repúdio da opinião pública mundial. Leiam a mesma Folha, de 22 de julho de 2022: “Aproximadamente 150 mil crianças indígenas foram separadas de suas famílias e matriculadas à força em 139 internatos do país durante o final do século 19 até a década de 1990. Investigações posteriores revelaram que muitas delas foram espancadas e abusadas sexualmente por diretores e professores. Estima-se que aproximadamente 6.000 alunos tenham morrido de doenças, negligência e desnutrição.” Ateu mais ou menos convicto desde os 15 anos, não levei em conta esse histórico para alimentar restrições à Santa Madre Iglesia. Pelo contrário, para atender ao apelo da mãe do pequeno João, concordei em batizá-lo sob a liturgia que caracteriza esta cerimônia há séculos. Para tanto, consegui a boa vontade de um padre amigo, também advogado e intelectual, um homem arejado e tolerante, na linha do simpático Papa Francisco. Para padrinhos, escolhi minha sobrinha Carol, uma menina de ouro, das pessoas mais íntegras que conheço, ao lado do marido Pierre, franco-português que há muito tempo caiu nas graças de nossa grande família pela retidão de caráter, generosidade e inteligência. De onde vive, em Genebra, acompanha com interesse e fervor os jogos da nossa querida Associação Olímpica de Itabaiana, fardado a caráter com a camisa tricolor. Como os padrinhos só dispunham de escassos 15 dias nesse cajueiro dos papagaios, consegui a generosidade do padre Zé Lima, da paróquia de Santa Dulce dos Pobres, para celebrar o batismo em 7 de janeiro próximo. Eis que, no primeiro movimento para cumprir o périplo dos protocolos necessários para consumar o sagrado ato, somos barrados no primeiro obstáculo por uma exigência medieval da vetusta Igreja: os padrinhos, desgraçadamente, mesmo sendo gente de bem, professando as leis de Deus, fazendo caridade e cultivando os melhores valores da família, não possuem na gaveta um papel que atesta seu casamento nos mandamentos da embolorada instituição. Como diziam os samangos de qualquer cidade nordestina nos anos de chumbo da ditadura: ‘ordis são ordis’. Sem a devida comprovação do matrimônio religioso na firma em questão, nada feito. Entre triste e desapontado, não deixo de constatar que mesmo uma organização que se esforça para melhorar sua imagem, fazendo mea culpas e permitindo pequenas aberturas, dirige seu foco para as ações que dão ibope, para ficar bem no caldeirão das bolhas das redes, qualhadas dos identitários, politicamente corretos e outros quejandos, enquanto reivindicações inexpressivas como um simples pedido de batismo são ignoradas pela pauta absolutamente midiática da patrocinadora da Inquisição e de outros crimes contra a humanidade. O pleito do inocente João, em meio ao burburinho dos padres marqueteiros e cantores de TV, não comove o dito sentimento cristão anunciado pela Igreja Católica: João seguirá pagão.   Compartilhe: [...] Saiba mais...
14 14America/Fortaleza dezembro 14America/Fortaleza 2023Compartilhe: Por Luciano Correia (*)   ui a Cuba pelo prazer do lugar, das suas gentes, sua música maravilhosa e a luz especial que brilha em toda a ilha. Da primeira vez, a estudo; da segunda, a trabalho; e desta vez, a passeio. Pernas então pra que te quero, se estamos de férias? Assim, equilibramos visitas a museus, parques e locais históricos com a velha e boa vida mundana, leia-se: rum, charuto, música e boas conversas. Como a excursão percorreu boa parte do país, gastamos um bom tempo também em longas viagens de ônibus, o que, para mim, é uma delícia. Sempre gostei de viajar de carro, olhando a paisagem e parando para comprar iguarias do local. Isso, quando vou a Caruaru, Campina Grande ou Itaparica. Em Cuba, não há muitas iguarias nas paragens. Mas Deus existe nos detalhes, não é? Entre Camaguey e Santiago de Cuba há um ponto de parada para comida que, acreditem, não havia água mineral para eu cumprir minha meta matinal recomendada por médicos e pelo mundo todo (no turno vespertino eu tenho acerto com outras religiões). Na falta de água… havia um chope no caminho. Isso mesmo: uma bruta caneca de 500 ml do melhor chope do mundo, a módicos 200 pesos, algo como quatro modestos reais. Mas a viagem só se faz completa com seus personagens. E, nesse caso, foram muitos. Figuras que, além de terem cruzado nossa vida numa situação especial, de acolhimento, parceria ou em encontros fortuitos, iluminaram um pouco nossa passagem pelo país, com fortes indícios de que se tornarão amigos para sempre. Começando por Havana, no apartamento onde fiquei com o amigo aracajuano Ricardo Nunes, sob as graças e a guarda do simpaticíssimo casal Tony-Irma. Ele, professor de História das graduações e mestrados da Universidade de Havana; ela, uma dona de casa muito culta e antenada com as coisas do mundo. A casa do casal, a menos de 500 metros do Capitólio, tomamos o melhor café de toda a Cuba, aliás, um desayuno completo, com especialidades preparadas com esmero e carinho pelos dois. Em Trinidad, dando uma última banda pelas ruas para tomar uma saideira, dei de cara, literalmente, com a ruiva Yoanei, uma bailarina que se apresenta com um grupo de dança cubana em hotéis e pontos turísticos pelas principais cidades. Vinha ela por uma rua e este pobre rapaz sedento de cerveja pela outra, quando quase trombamos nossas ventas no encontro das ruas. “Que pasa chica, donde vas asi demasiado apurada?” A muchacha: “para aquela festa ali”, e apontou uma escadaria onde, no alto, um show maravilhoso da melhor música cubana acontecia num palco iluminado. Foi minha primeira grande aula de salsa, com cerveja e charutos até a madrugada. Na mesma Trinidad, na manhã seguinte, topei com outra diaba em forma de gente, a morena Liany, funcionária de uma lojinha de guayaberas e souvenirs. Usava um vestidinho florido, tão belo quanto curto, que fez a festa dos olhos de quem nesta manhã pousou na modesta lojinha. À noite, novamente em busca da última cerveja, meus solitários pés e o infalível Deus do Acaso me fizeram encontrar com a guapa morena na rua principal da cidade. De novo, música e mojitos dentro da noite veloz. De Trinidad a Santiago, longa marcha, fizemos uma parada em Cienfuegos, cidade elegante, bem conservada, com belos edifícios. Como o país está em regime de contenção total de energia, a recepção foi à luz da lua nova, ou seja, no breu da noite. Nem deu tempo de conhecer gente local. Foi parada técnica com jantar e retirada na manhã seguinte. Santiago de Cuba. Jamais imaginei que esta cidade me reservava tantas surpresas agradáveis, com uma arquitetura imponente e bem cuidada, falando a linguagem das cidades internacionais, sempre visitadas por turistas. Aqui no Brasil, é raro, raríssimo. São poucas as cidades que recebem turistas estrangeiros. não que ter estrangeiros nas ruas seja puramente um indicador, mas para a economia, sim. Em Santiago, a porta de entrada para me apaixonar pelos seus encantos foi a música, nas ruas ou casas de espetáculos. Ali, na Casa da Trova, conheci a serelepe Alina, uma negra de 55 anos, um foguete dançando os ritmos locais, alegre como uma criança, pobre como um franciscano (os de antigamente, se me entendem). De dia, andando à toa pelas calles, um amigo que me acompanhava foi vítima de uma daquelas ciladas cruéis que apronta o destino, digo o intestino. Vendo sua cor ganhar um tom de amarelo-verde, fruto da agonia das tripas em plena revolução, fui pedir ajuda justamente na casa de… Alina. Santa coincidência, numa cidade de mais de 600 mil habitantes. Fiquei comovido com o estoicismo de uma moça com quase 60 anos, vivendo numa espécie de casebre, mas celebrando a vida todas as noites em seus vestidos brilhantes na pista da Casa da Trova. Alina foi um dos destinatários das dezenas de presentes humanitários que levei numa mala à parte. Foi uma alegria poder vê-la contente com meus agrados. Sim, o buraco nos fundos da casinha que servia de banheiro à família de Alina foi mais que suficiente para resolver todos os problemas do meu apertado amigo. Na Casa da Trova também conheci outra exímia bailarina, Daniela, filha de pais médicos que atualmente vivem no Rio de Janeiro. Negra bela e fogosa, Dani é um sucesso na pista e no coração dos frequentadores da noite santiagueira. Outra personagem marcante foi a proprietária da casa onde ficamos, Yolanda, mulata muito parecida com Omara Portuondo, também apreciadora de boleros mortíferos, que interpreta num timbre forte e dramático. Despachada e escrachada, foi logo avisando a mim e ao Ricardo assim que baixamos as malas na sua varanda: “Não dou a chave da casa a homens, porque eles perdem por aí, por cachaça ou pelas putas. Outra coisa: mulheres aqui, não! Se arranjarem alguma pela rua, fiquem por lá mesmo.” No dia seguinte eu brinquei: “Yolanda, vou precisar de uma chave. É que eu conheci umas meninas ontem na calle Boulevard”. Yolanda quase me expulsa quarto à fora. De volta a Havana, conheci Javier, dono de uma bicitáxi que me levou para um périplo por lojas estatais de charutos, cigarros e rum. Já avô, não exibia cansaço em conduzir seu meio de transporte e de vida pelas ruas de Centro Habana, desviando de gente, carros e outras bikes com uma maestria chapliniana, sempre com uma boa história pra contar. Na despedida, quando paguei a conta e deixei com ele um par de sapatos de couro de carneiro e algumas de minhas camisas floridas Made in Toritama, abriu um gigantesco sorriso com a boca escancarada cheia de dentes. Numa amena noite de domingo, peguei um táxi para a Fábrica de Arte, um diversificado centro cultural no bairro de Vedado, com salas de teatro, cinema, música, exposições e gente circulando e praticando o universal esporte do levantamento de copos. Ali conheci também María, atleta de basquetebol, segundo ela, da seleção cubana. Tímida, simpática e muito bonita, me levou por várias salas da Fábrica, contando coisas de sua vida, de amigos e parentes e da vida de esportista pelo mundo. Nos despedimos horas depois nas imediações do Capitólio, com a promessa de cerveza-e-rum na manhã seguinte, jamais cumprida graças a uma última olhada que fui dar no velho e querido Hotel Nacional, joia da cultura, história e arquitetura cubanas que me abrigou por três meses em 1989. Os cubanos dizem sempre: “asi es”. E esse tio, modestamente, declara: assim foi! Compartilhe: [...] Saiba mais...
1 01America/Fortaleza dezembro 01America/Fortaleza 2023Compartilhe: Por Luciano Correia (*)   uba respira, para desgosto dos ignorantes. As redes sociais digitais abriram a tampa do inferno e empoderou cada idiota que passou a dar opinião sobre tudo. Nelson Rodrigues já havia preconizado isso, décadas antes do surgimento da Internet. No Brasil esse fenômeno ganhou tintas especiais com a ascensão do movimento político mais estúpido em 129 anos de república, o bolsonarismo-miliciano. Assim, se já era arroz-de-festa falar mal de Cuba antes da eclosão das redes, onde cada imbecil é uma TV própria, com seguidores, imagine atualmente. Para decepção dos analistas de calçada, aviso que não vi mais sinais da revolução e muito menos do comunismo em Cuba. Nem eu nem grande parte da população. No meu DataLuc das ruas, é raro encontrar defensores fiéis, como o senhor Tony, dono do apartamento em que fiquei em Havana Velha, professor de História da Universidade de Havana. Se na primeira vez, em 1989, encontrei uma sociedade acomodada com os subsídios da pátria mãe do mundo socialista, a União Soviética, em 1997 assisti ao desespero e fome do chamado “período especial”, quando o governo da ilha teve que caminhar com as próprias pernas, sem ajuda internacional. Sem pernas pra andar, sucumbiu a uma das piores crises humanitárias do século passado. Desde a morte de Fidel em 2014, e o crescente apagamento da mística em torno dos heróis da Sierra Maestra, uma nova geração ascendeu ao poder, oriunda da velha burocracia partidária incrustada no Estado, sem carisma político e com alguma capacidade administrativa. Alguma. O suficiente para entender que, se não abrir a economia, não há saída num horizonte próximo. A novidade que encontro nessa minha terceira viagem é uma incipiente classe empreendedora, de micros e pequenos negócios, desde restaurantes caseiros, hostals ou pizzarias, dentre outros. Isso tem gerado renda, muita, para alguns. E empregos, para outros, com salários muito baixos, mas quem somos nós para falarmos de baixos salários da classe trabalhadora? Um enorme sopro nesta nova fase na vida da ilha vem dos chineses, esses onipresentes investidores que, embora oficialmente comunistas, praticam um avançado capitalismo de mercado. Para um país proibido de buscar relações com os capitalistas americanos, o investimento chinês é sopa no mel. Uma boa amostra pode ser vista no fabuloso canteiro de obras que restaura prédios inteiros de Havana Velha, com uma qualidade que faz as obras públicas de Pindorama corarem de vergonha. Da China também vêm os milhares de novos carros e motos elétricas que tomaram as ruas de Havana e das principais cidades, um alento para quem praticamente não dispunha de transporte público com mínima qualidade há décadas. Se os chineses são hoje o principal parceiro econômico da ilha, a Rússia, histórica parceira, vem retomando aos poucos o comércio com o país, ilustrado, entre outros insumos, nos novos Ladas que desfilam nas ruas, ao lado dos velhos automóveis símbolo da era soviética com seu design quadrado, retangular, registro de um tempo passado. O táxi que me levou de volta ao aeroporto José Marti foi um desses, moderno e confortável, comprado pelo taxista Alfredo em regime de comodato com o governo. Por falar em restaurantes, há os estatais e os privados. Vi bom atendimento e melhor comida tanto em uns quanto em outros. E, eventualmente, alguns problemas, também nos dois modelos. Para se ter uma ideia, nos 15 dias que viajei pelo país o lugar que comi com menos qualidade foi justamente num resort à beira mar, o espanhol Ibero Star de Cayo Guillermo, um gigante confortável no mar do Caribe, mas com má gestão. Nos demais dias, fiquei entre casas de famílias e pequenos hostals, todos eles com um serviço de primeira, o carinho imenso dos proprietários, coincidentemente a maioria mulheres. A exceção foi o banho de chuveiro, mas, quem somos nós, com nossas Desos e Sabesps, pra falarmos de pouca água nas torneiras? Nas duas semanas pelo país, andei de noite e de dia, só ou com amigos, indo ou voltando de baladas ou eventos. Não sofri sequer uma só situação de risco ou assédio, embora muitos dos nossos anfitriões se repetissem em alertas e relatos de perigos. Um estraga prazeres da excursão perguntou ao nosso guia oficial, de curioso nome Alain Delon, a razão de tantas grades em portas e janelas do país inteiro. Ele desconversou e saiu-se com essa inusitada resposta: “é uma questão de preferência dos proprietários, de decoração”. Verdade ou não, quem somos nós pra falarmos de segurança? Compartilhe: [...] Saiba mais...
22 22America/Fortaleza novembro 22America/Fortaleza 2023Compartilhe: Por Luciano Correia (*)   Voltei a Cuba 26 anos desde a última vez. Primeiro foi em 1989, ainda sob o signo da Cortina de Ferro e da estrela da União Soviética, responsável então por uma banda do mundo. Ali vivi três meses no tradicionalíssimo e lendário Hotel Nacional, depois de duas semanas no subúrbio de Machurrucutu. Fui para uma pós-graduação intensiva, uma especialização em economia e relações internacionais na Universidade de Havana, por um programa da Flacso, e mítica Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais, onde pontuou, lá atrás, gente como Fernando Henrique Cardoso. Foram três dos melhores meses de minha vida. Primeiro, por ser pago para estudar, que é a melhor coisa do mundo. Depois, pelo contentamento com a primeira viagem para fora do Brasil, ainda mais num país celebrado pela minha geração de esquerda, pelas ditas conquistas da revolução e pelo irremediável charme que ainda emanava dos barbudos da Sierra Maestra. Na época, claro, o Che já não vivia, abatido que foi na selva boliviana em 1967, e Camilo tampouco, morto num acidente aéreo que os “contra” cubanos especulavam ter sido provocado. Mas Fidel sustentava bem a mística em torno dos guerrilheiros que fizeram uma revolução que deixou o mundo entre fascinado e incrédulo. Fidel ainda portava um charme que encantava não só a esquerda e mídia mundiais, mas, sobretudo, o povo cubano, em sua maioria. Orador extraordinário, fazia qualquer um admirá-lo por horas nos seus intermináveis discursos, mesmo que por baixo do tapete corresse já uma onda de críticos, dissidentes e prisioneiros. Foi essa Cuba que experimentei, numa fase militante de minha vida, na época engajado no velho PCB, O Partidão, entre defesas ainda eloquentes do regime e muita boemia entre os colegas de curso. No fim, creio eu, venceu a vida mundana, alcoólica, musical e cheia de amores pelas calles do bairro Vedado. A segunda viagem foi em 1997, para participar de um evento internacional de Televisão, onde apresentei um trabalho (os bossais da academia chamam: paper) no famoso Capitólio de Havana. Aqui uma pausa para um registro: os guias turísticos locais dizem com orgulho que o belo edifício é um metro mais alto do que o equivalente americano. Já sem muito entusiasmo pela política, conheci muita gente de imprensa e televisão, alguns deles claramente insatisfeitos com o regime. Foram só sete dias, dividido entre as belas colunas do hotel Inglaterra, em Centro Habana, os painéis do evento, um calor senegalês e a maviosa música de uma banda feminina que se apresentava no terraço do velho hotel. Por uma dessas decisões que a gente não explica, resolvi voltar agora em novembro, numa excursão pilotada pelo gaúcho Thomaz, um advogado que resolveu apostar nesse turismo pela ilha. São roteiros diferentes, seguindo uma espécie de narrativa ou curadoria que explora vários aspectos da vida e da história. Topei o arriscado desafio de passar 15 dias em um ônibus lotado de senhorinhas petistas e outras menos atentas aos movimentos da política no mundo, mesmo que isso custasse dissabores eventuais, impaciências e o inevitável cansaço. Sim, teve também o concurso do paulista João, pé de cana de quatro costados, e do amigo arquiteto Ricardo Nunes, dos nossos Aracajus. Ao fim e ao cabo, sobrevivemos com poucos arranhões. A primeira razão que despertou em mim a vontade de voltar à ilha, além de sua extraordinária cultura, com uma das três melhores músicas do mundo, foi o cumprimento de um roteiro pelo interior do país, passando por cidades como Trinidad, Camaguey, Santiago de Cuba, Cayo Guillermo e Santa Clara, além de Havana. Pesou também a certeza de encontrar um dos povos mais felizes e cordiais do planeta, mesmo com todo infortúnio que se abateu sobre sua vida após o colapso da União Soviética e do chamado socialismo real. Enfim, com uma agenda assim e a alma leve para não achar nada chato, como diz Gil, mergulhei num honesto mergulho pelas dores e delícias de uma Cuba que também sinto minha, voltando com novas impressões na mochila, além de uma garrafa de rum e um punhado do charuto pé-duro vendido nas lojas estatais. É o que contarei no próximo artigo. Compartilhe: [...] Saiba mais...
28 28America/Fortaleza outubro 28America/Fortaleza 2023Compartilhe: Luciano Correia (*)   A passagem do tempo tem me feito mal, e isso se manifesta em mim numa situação de ansiedade permanente, medos e incertezas talvez sentidos numa medida exagerada. Vim do mundo da militância política, do movimento estudantil e dos partidos de esquerda onde, não raro, as manifestações de solidariedade e empatia ou não existiam, ou aconteciam como farsa. Sabe aquelas imagens clássicas de políticos de esquerda passando a mão na cabeça de meninos da periferia ou se comprazendo dos sofrimentos do chamado povo? Pois quase tudo era teatro. Já no ambiente da direita conservadora, nem esse teatro simbólico. Ali é pau puro, do pescoço pra baixo. Salvo raríssimas exceções aqui ou acolá, continuo pensando o mesmo de figurões de toda ordem, não só os públicos, mas também, e principalmente, dos que estão fora do poder público. Mas o tempo resolveu me castigar enchendo de dores esse peito onde batia um coração, que hoje só apanha. Se eu disser que a chegada de um pobre e abandonado gato em minha vida, fruto de uma algaravia de bichanos na minha porta, há exatos onze anos, mudou minha vida, vão dizer que estou falando besteira. E pode ser, a depender de quem vê a situação. Tudo isso vem a propósito da carnificina que ora varre do mapa o território de Gaza, depois dos ataques brutais do Hamas em Israel. Aprendi minha solidariedade à causa palestina no antigo jornal Pasquim, numa época em que a imprensa brasileira ignorava a pauta estado Palestino, com jornalistas como Fausto Wolff, autor de um livrinho oportunamente chamado “Os palestinos – judeus da 3a. Guerra Mundial”, no qual ele descreve os horrores do massacre de Sabra e Chatila, no ano de 1982 em Beirute. De lá pra cá, só piorou, com os palestinos vagando pelo mundo, como os judeus por séculos e séculos. Num mundo sem pátria, ou mais recentemente espremidos nas faixas de Gaza e Cisjordânia, sofrem as mesmas dores dos judeus na terrível 2a. Guerra. O terror no Oriente Médio a grande mídia chama de “guerra entre Hamas e Israel”, como se os dois lados estivessem equilibrados numa disputa. Encerrados os ataques covardes do Hamas em Israel, aí o jogo é de um contra ninguém, como se diz no futebol, linha contra defesa. Os terroristas do Hamas, com sua frieza escrota em nome de Alá, se escondem em túneis inacessíveis, inclusive aos palestinos, e deixam inocentes serem massacrados sob bombas, crianças despedaçadas, crianças órfãs com suas vidas interrompidas para sempre. Às vezes esse ateu comovido pensa que o melhor mesmo é a destruição final, como preconizou Nostradamus, naquele livro cheio de coincidências terríveis. Às vezes penso que, talvez, quanto pior, melhor, pra interromper tanto sofrimento com o castigo de todos. Penso, não: pensava. Desde que botei no mundo, há oito meses, o pequeno e também intrépido João, o Jão Cabeça Quente, Berro Grosso do Mosqueiro, já nem tenho direito de pedir fogo no circo. Que os que creem em Jesus ou Jeová, em Kardec ou nas divindades de Oxum, Oxóssi ou Oxalá rezem pelas minhas dores e pelo futuro de Jão. E os de Alá também, claro. Isto, se os degoladores de crianças, considerarem que Alá teria algum tempo e atenção para com um pobre ateu pessimista dos trópicos americanos. Compartilhe: [...] Saiba mais...
5 05America/Fortaleza outubro 05America/Fortaleza 2023Compartilhe: Luciano Correia (*)   Quem conhece a obra do estupendo João Ubaldo Ribeiro sabe que num dos seus livros preguiçosos, aqueles relatos a que um grande escritor dedica-se (ou delicia-se) só por brincadeira – ou para cumprir contratos com editores – “Um brasileiro em Berlim”, ele dedica um improvável capítulo à sua passagem por uma de suas pátrias, o nosso pequenino Sergipe. Improvável, porque deveria tratar, tão somente, do relato de sua passagem pela capital alemã (ainda sem a unificação das duas), no período em que cumpriu uma bolsa para escritores latino-americanos. Não sei as razões, mas me surpreendi quando, ao ler o livro, me deparei com este capítulo de parte da sua vida em Aracaju. Manoel Ribeiro, juiz em Sergipe Todos os que fazem referências ao talento do escritor, logo citam a erudição de João Ubaldo. Esta marca do autor vem praticamente de um saudável despotismo, praticado pelo pai, Manoel Ribeiro, juiz por muitos anos em Sergipe, ele, por si só, responsável por tantas histórias. Quem quiser enriquecer seu repertório converse com gente como João Augusto Gama, um compilador de grandes histórias da província. O juiz Manoel Ribeiro, homem culto, rigoroso e conservador, obrigava o menino João à interminável leitura dos principais clássicos da literatura, tomadas depois como lição por um pai-professor, cioso do futuro de seu filho homem. Eis aí um bom castigo, embora só o pequeno João pudesse mensurar a solidão a que era submetido no gabinete de leitura da casa na praça Camerino (se não me engano), torturado pela algaravia dos meninos da vizinhança e colegas de escola, extasiados com as brincadeiras de rua e o jogo de futebol. Ubaldo deu nisso: um dos melhores escritores brasileiros, imortal da academia, embora este último título pouco ou nada importe na biografia de um autor já imortalizado pela grandeza de sua profícua produção literária. Se a lenda da vida eterna valer, o velho Manoel Ribeiro hoje está sorrindo pela chegada de seu filho querido, fruto bem plantado e melhor colhido. Ubaldo e Getúlio Há uma unanimidade, entre letrados, de que o melhor livro de João Ubaldo é justamente “Sargento Getúlio”, a famosa obra imortalizada no cinema pelo filme de Hermano Penna, filmado (gravado, não: filmado mesmo, numa câmera de 16mm) aqui nos nossos sertões de Canindé, Poço Redondo, um road-movie cangaceiro desde Paulo Afonso até as franjas da Aracaju do começo do século XX. O livro é uma denúncia das mazelas do Nordeste, uma realidade dominada por jagunços e coronéis, ambos confundidos com o próprio poder político. O protagonista, Getúlio, é figura de carne e osso e conheço gente em Aracaju que o conheceu. No filme de Penna ele é ninguém menos do que Lima Duarte, um dos grandes da dramaturgia nacional, que percorre as veredas sergipanas numa velha fobica (assim se chamavam os carros velhos de antigamente) ao lado do fiel motorista Amaro (o não menos grandioso Orlando Vieira). A brutalidade de Getúlio não é maior do que a que prevalecia na sociedade brasileira da época, a mesma que permitiu, em Sergipe, o prolongamento do mesmo estilo com seu irmão Barreto Mota, o célebre e temido comandante da polícia estadual por décadas. Como jornalista, fui contemporâneo desses tempos, mas o que me vem à memória faz parte do ocaso de sua vida, dele, Barreto Mota, já aposentado, um velhinho bem-humorado e casca-grossa rebatendo piadinhas no cafezinho da Solanches, de Raimundo, no Calçadão da Laranjeiras. O filme virou cult do cinema brasileiro, quase artesanal, com uma só câmera, fazendo planos e contraplanos (imaginem o trabalho que deu) e com uma penca de grandes sergipanos brilhando na telinha. Lá estão, além do nacionalmente consagrado Orlando, Amaral Cavalcante, Antônio Leite, Luiz Antônio Barreto e tantos. Amaral atuou também como produtor local. Foi ele quem conseguiu o revólver usado por Lima, emprestado, adivinhem de quem? Acertou quem pensou em Barreto Mota. Compartilhe: [...] Saiba mais...
21 21America/Fortaleza setembro 21America/Fortaleza 2023Compartilhe: Por Luciano Correia (*)   Nos cinco anos em que pelejei com o mestrado e o doutorado, no Rio Grande do Sul, não li uma só linha que não fosse dos textos voltados para as demandas acadêmicas. Em compensação, esse período, que foi luminoso sob vários aspectos, me legou uma abertura para os livros, a leitura densa e intensa e a capacidade de dialogar com meus autores. Findas as tarefas, voltei para terrinha, para outros trabalhos que não só o acadêmico e, principalmente, para as leituras escolhidas sob um livre arbítrio. Vai daí que tenho lido muito, e pelas minhas mãos têm passado clássicos da literatura, outros nomes mais modernos nacionais e internacionais, além das publicações sobre os descaminhos desse nosso mundo virado. Foi assim que, numa das leituras recentes, o autor da hora falou de Sobre a Tirania, de Timothy Snyder, um professor de história de Yale, nos Estados Unidos, sucesso editorial no mundo inteiro, certamente porque sabe dosar bem as ferramentas acadêmicas com a capacidade de falar para todos os públicos, com rigor e estilo. Snyder é um desses autores atuais que começaram a explicar o mundo pós-Muro de Berlim, após o marasmo em que mergulharam os teóricos e movimentos de esquerda desde que o chamado socialismo real se desmanchou no ar. É certo que demorou muito para essa nova safra de intelectuais começar a botar as manguinhas de fora, até porque a ressaca pós-comunista paralisou também o mundo das ideias, ao ponto de terem imaginado o próprio fim da História. “Vinte lições…” não é dessas leituras metidas a impressionar com voz empostada. Pelo contrário, é tão despretensioso que se apresenta simples até na forma, um pequeno livro de bolso, com curtas e diretas lições para uma nova ética nesse complicado século 21, a partir da experiência de um turbulento século 20. Mas é profundo nos diagnósticos e preciso nos conselhos para construir valores comuns e universais nesses tempos que correm. Saio um pouco do texto para considerações paralelas sobre um dos melhores filmes da minha vida, Sunshine, O Despertar de um Século, de István Szabó, um estupendo diretor húngaro que se baseia no drama da própria família para contar a saga de três gerações, desde a aurora ao crepúsculo do século passado, sofrendo os horrores dos três elementos que ele considera as grandes tragédias dos anos de 1900: o fascismo, o nazismo e o comunismo. O filme é um comovente depoimento do sofrimento das vítimas desses três regimes, contado sob os pontos de vista de três gerações que assistem à ascensão e derrocada desses totalitarismos marcados pela barbárie. Nesse aspecto, o livro de Snyder também percorre o século 20 desde o colapso da democracia na Europa nas décadas de 1920 e 1940 até a vitória de Donald Trump e o ressurgimento da extrema direita no mundo inteiro. As lições são apresentadas sem pompa nem delongas, como a primeira, que diz simplesmente: “Não obedeça de antemão”, onde o autor lembra que em grande parte o poder do autoritarismo é concedido voluntariamente. Abusando também da simplicidade, resumiria esse autor que vos escreve: o silêncio e a inércia são os melhores aliados da tirania. Ou buscando nas antigas lições do bom jornalismo: duvidar, duvidar sempre. São questões distintas, mas que convergem para a construção da democracia como um valor universal, feita de contradições, turbulenta em si, instável, mas firme, inquebrantável e perene. Lições como a defesa das instituições, os riscos do partido único, a coragem para assumir responsabilidades para com o mundo, a ética profissional, a rejeição aos grupos paramilitares, a defesa da língua e da verdade sem adjetivos, a preservação da vida privada e o diálogo com gente de outros países. Recomenda ainda o cuidado com as chamadas “palavras perigosas”, a defesa da pátria, mas sem os pieguismos contaminantes, a adoção da política corpo a corpo e do diálogo sobre generalidades, cultivando relações amistosas. Trata-se, pois, de um livro breve e de linguagem direta, que se lê num fôlego, mas a cujas páginas devemos voltar sempre para nos certificar do andamento das coisas, uma espécie de check list individual frente às boas causas, por mais que as “boas causas” sejam um conceito aberto, capaz de abranger subjetividades para os vários lados. Nesses tempos de polaridades emburrecidas e consensos estéreis pautando a grande mídia, vale muito passar pelas breves considerações de Timothy Snyder.   Compartilhe: [...] Saiba mais...
15 15America/Fortaleza setembro 15America/Fortaleza 2023Compartilhe: Luciano Correia (*)   A propósito da tragédia que se abateu sobre o Marrocos, exatamente em Marrackech e região, trago essa semana um tbt de uma matéria que fiz em 2010, quando vivia na Espanha, fazendo o doutorado sanduíche. Para contrastar um pouco com a tristeza trazida pelo terremoto, um pouco da alegria de uma curta viagem pelo seu lindo território. Lá em Marrakech Antes de deixar Madrid, fui ao Marrocos, dessa vez com três amigos brasileiros que vivem em Barcelona. O continente africano sempre me fascinou e, em duas ou três vezes antes, tentei ir ao Marrocos, a partir da cidade do Porto ou de Granada, em diferentes momentos. Para terem uma ideia do preconceito europeu: em 98, o funcionário de uma agência de viagem do Porto me desaconselhou a fazer um circuito sozinho por este país, segundo ele, “pelos perigos que representava”. Curioso: no momento em que escrevo este texto, a bordo da segunda pior companhia aérea do mundo, a Tap, com seu atendimento de quinto mundo, folheio jornais portugueses que dão conta de uma violência que não vi no Marrocos nem nos países europeus onde estive ultimamente. Portugal tem uma bela comida, bons vinhos… e o fado. Não podemos generalizar, mas vejo que grande parte das mulheres são demasiadamente duras no trato. Fado sim, fodas não. Cheguei a Marrakech com uma hora de atraso, graças à pior companhia aérea do mundo, esta, sim, a campeã, Ryanair. É um pau-de-arara voador, com uns vinte meninos de colo chorando desde a sala do embarque em Barajas até o controle de passaporte nesta cidade linda e avermelhada. Fico com certa pena das aeromoças, obrigadas a circular pelo corredor vendendo bugigangas e perfumes, como fazem os bancos brasileiros, inclusive os estatais, para que os funcionários atinjam metas e cotas. O Marrocos é lindo, envolvente, uma experiência radical, mas às vezes abusa de nossa paciência. Reza a tradição que toda compra deve ser negociada. Já sabia disso, mas não imaginava que era tão irritante. Não existe tabela de preços. Tem-se que negociar tudo. Minha estreia foi no táxi que me levou ao pequeno hostal situado nos limites da Medina, na parte de dentro, onde já se encontravam os colegas de Barcelona. Já sabia o preço da corrida antecipadamente, mas fui obrigado a entrar numa absurda negociação para regatear o que, para mim, parecia apenas justo. Por fim, batemos o martelo: dez euros, por uma corrida de menos de cinco quilômetros, o que é caro, mesmo para os padrões europeus. No hostal, sou recebido pelo sorridente Ali, que, além de não falar espanhol, arranha um inglês na velocidade 5, de modo que compreendo uma outra palavra. Ele oferece a bebida que, a partir de então, vai ser minha pedida nesse país muçulmano: o chá de menta. É impressionante, porque, embora se consiga álcool em hotéis e restaurantes, no restante do país é impossível molhar o bico. Sempre que pergunto por uma cerveja, um rabo de galo que seja, mas eles riem e dizem que “álcool não”. O segundo dia foi consumido nas vielas e no mercado de Marrakech, travando uma luta titânica com o vendedor toda vez que pretendia comprar um pequeno regalo. Para não negar a fama de bicho-grilo, no dia seguinte encarei um programa radical: eu e mais doze pegamos uma van e subimos as montanhas que circundam Marrakech e avançamos por todo o dia sobre o território berbere até chegarmos a Zagora no final da tarde. Uma cidade bonita e organizada situada nas franjas do Saara. Mais meia hora de carro e paramos num povoado, para compras necessárias no ambiente off-civilização: basicamente papel higiênico e água. A van avançou mais alguns quilômetros e, finalmente, trocamos seu desconforto pelo desconforto elevado ao cubo oferecido por um camelo. Pode ser bonito no cinema, mas é um troço estranho, com uns solavancos bruscos que ameaçam nos jogar pelos ares, ralando a bunda, coxas e pernas, condições ideais para assaduras pelos dias seguintes. O deserto radical   Uma hora e meia e algumas piadas depois, chegamos num acampamento berbere, tribos nômades que habitam o Saara desde que Maomé vestia fraldas. Somos recebidos com uma rodada de…. chá de menta. Pergunto a Hassan, um dos simpaticíssimos rapazes condutores dos camelos e responsável por toda infra, se não há um goró por perto, só para eu matar saudades da mardita. Ele aponta para a bela chaleira e tira uma chinfra com minha pergunta: “uísque berbere”. Isso tudo na tenda principal, com todo o grupo sentado em tapetes e ao redor de duas mesinhas rebaixadas, onde depois, numa grande panela, foi servido o jantar: frango cozido com legumes, pão e… chá de menta. Um dos meus amigos fez cara feia e disse que não comia em prato coletivo, com todo mundo enfiando seu garfo. De minha parte, como é sabido, nada acho chato. Comi feito um sultão do deserto. A noite terminou na beira de uma fogueira, madrugada adentro, com os cânticos berberes e – já era mais que hora! – um uísque espanhol, meio safado, que o impagável Pepe, espanhol de Mallorca, sacou sabe-se lá de onde. O tal Pepe foi uma atração à parte na viagem: cheio de histórias, tinha jeito pra tudo. Nunca um uísque vagabundo foi tão curtido e cultuado. A gripe que depois me fez companhia foi apanhada aí, na frieza da noite saariana, tomando o tal xarope e cantando a melhor música brasileira: Gil, Caetano, Luiz Gonzaga e… Bartô Galeno, sucesso, como diria Rossi, em todos os motéis e cabarés das cidades nordestinas. “Eu vou pedir à lua/ Pra iluminar a rua…” É poesia pura sob a lua cheia e as constelações do deserto. Uma argentina que integrava o grupo deu uns balanços e depois pediu: “Não sabe uma de Cássia Eller?”. Não. Todos os brasileiros da aventura eram nordestinos. Honestidade árabe Com toda a fama de ligeiros nos negócios que os marroquinos carregam, achei que tinha contratado um pacote turístico numa agência falcatrua. Pela cara dos sujeitos, cheirava às organizações Tabajara. Mas tudo foi cumprido com simplicidade, mas sem falhas. A agricultura sustentável No Brasil, a palavra “sustentável” ainda está na fase do modismo de congressos e ambientes acadêmicos, mas no deserto vi a sabedoria das tribos do Saara aplicada nos modos de cultivar a terra, de usar os recursos, irrigar, guardar água, enfim, viver com uma dignidade surpreendente. O melhor suco do mundo Até então, tinha no nosso maravilhoso suco de cajá a melhor bebida do mundo, tirante as alcoólicas, evidentemente. Em Marrakech, sobretudo na praça central, fazem um suco de cítricos, mistura de laranja, umas tangerinas e toronjas que resultam num suco incrivelmente saboroso. É a melhor bebida da minha vida. Se o Marrocos não fosse a riqueza que é, valeria uma viagem só pra beber essa delícia. Compartilhe: [...] Saiba mais...
25 25America/Fortaleza agosto 25America/Fortaleza 2023Compartilhe: Luciano Correia (*)   O último filme do grego  Costa-Gavras é uma aula de política. O tema da película, a luta do então ministro das Finanças da Grécia, Yanis Varoufakis, contra o establishment das finanças mundiais no processo de renegociação da dívida externa, é também uma aula de esperança. Quebrada por seguidos governos corruptos e gastadores, a Grécia mergulhou numa crise sem precedentes em 2008. Em 2015, todas as esperanças da população dali foram confiadas à eleição de um jovem engenheiro de 41 anos, Alexis Tsipras, carismático líder do partido de esquerda radical Syriza. Eleito primeiro-ministro, coloca na pasta das finanças Yanis Varoufakis, jovem brilhante, militante de organizações sem fins lucrativos para a geração de renda para os pobres, um intelectual refinado e professor de importantes universidades de países como Inglaterra, Estados Unidos, Austrália e a própria Grécia. O filme baseia-se no relato que Varoufakis faz no seu livro “Adultos na Sala: Minha Batalha Contra o Establishment”, o passo a passo do duríssimo enfrentamento das feras dos governos e bancos europeus, um jogo bruto e violentamente desequilibrado em favor dos donos do capital. Habilidoso, preparado como pouquíssimos na política, na economia e na interlocução com os líderes mundiais, Varoufakis lembra o destemor, a obstinação e a utopia de um Che Guevara jovem, antes de virar o que virou no exercício do poder. Só que muito mais preparado, raciocínio ligeiro e mordaz, quando necessário, mas temperado pela paciência e pela tolerância incomuns no ambiente em que ele jogava as cartas da renegociação da dívida grega. O filme é a reprodução desse sofrido processo em tons fortes, ora dramático, ora com leves toques de humor. Costa-Gavras, um gênio do cinema, muitíssimo mais importante do que uma dezena de “monstros” consagrados pela mídia, com filmes como Z, de 1969, sobre o assassinato de um político liberal em plena ditadura militar grega; Estado de Sítio, 1973, que trata da repressão no Cone Sul, e Missing – Desaparecido, de 1982, sobre os assassinatos políticos na ditadura do general Pinochet no Chile. Estes são os mais emblemáticos trabalhos de Gavras, um grego que era adorado por dez entre dez companheiros de minha geração. Costa-Gavras tem uma filmografia extensa, com muitos outros títulos, mas estes foram os que constituíram seu portfólio político, sendo cultuado nos ambientes da esquerda no mundo todo. Um pouco sumido da mídia – desgraçada mídia: de que gostam seus tubarões, afinal? -, ganhou novamente a atenção da crítica com o impagável O Capital, de 2012, seu penúltimo filme, antes de nos brindar com essa maravilha de Adults in The Room – escrevo o título em inglês porque ainda não foi lançado no Brasil e sabe-se lá que título a indústria nacional, com suas esquisitices, vai arranjar. O Capital é também um filme extremamente político, dessa vez flertando com o humor e a ortodoxia dos mercados financeiros mundiais, a devoção sagrada ao São Capital. Em Adults in The Room, ele dramatiza a batalha quase solitária de Varoufakis, sabotado pela direita grega, a mídia – olhe ela aí de novo, cumprindo seu “papel histórico”! –  e pares do próprio governo. Charmoso, inteligente e culto, a impressão é que essas qualidades despertam uma inveja secreta no primeiro-ministro Alexis Tsipras, tais são a passividade e a distância com que acompanha o sangramento público do seu ministro das finanças. Ou não. Talvez seja mesmo essa a diferença de um político populista de esquerda – Tsipras – e um jovem de esquerda íntegro e transparente – Varoufakis. O fim da história é conhecido: abandonado pelo populismo calculista do seu líder, não resta a ele senão renunciar. Tsipras, por seu turno, renuncia pouco depois e convoca novas eleições, vencendo e ganhando condições para governar por quatro anos. Mas em 2019, em novas eleições, adivinhem quem vem para jantar Tsipras, o Syriza e o sonho socialista dos que apostaram numa saída antiliberal, antiausteridade contra a ditadura do FMI e Banco Central Europeu? A velha e onipresente direita, que se aproveita do desgaste provocado pela dose do remédio aplicado na economia para buscar apoio dos mais afetados pelas medidas de arrocho, ele mesmo, o mítico povo, sempre disposto a votar contra si próprio. Sonho socialista grego naufragado, resta-nos o luxo das ideias e a energia de Varoufakis, bálsamo de esperança para essa juventude que vaga nas ruas e universidades, iludidas por tolices como o PSOL e suas antas batizadas. E o mais importante de tudo isso: a delícia de ver um Costa-Gavras, aos 88 anos, intelectualmente ativo, vibrante, nos entregando obras de arte como Adultos na Sala. Compartilhe: [...] Saiba mais...
10 10America/Fortaleza agosto 10America/Fortaleza 2023Compartilhe: Por Luciano Correia (*)   Nessa semana a TV Sergipe me entrevistou para falar sobre a breve convivência que tive com o jornalista Joel Silveira, junto a outras pessoas que conviveram com ele. Joel dispensa apresentação, né? Sergipano de Lagarto, veio ainda menino para Aracaju, onde o pai foi um médio comerciante estabelecido no centro da capital. Saiu daqui muito cedo, decidido a se tornar escritor ou jornalista no Sudeste. Foi as duas coisas, se tornando o que muitos até hoje consideram o maior repórter da história da imprensa brasileira. Cobriu a 2a. Grande Guerra, passou por grandes jornais e revistas e desfrutou de uma rara intimidade com o poder até meados do século passado. Sem nunca ser seu comensal, dependente ou cúmplice. Era conhecido como A Víbora, uma pena furiosa, que eu mesmo experimentei na pele logo que ele chegou aqui para um segundo período, em 1986, quando veio exercer a função de secretário de Cultura do Estado. Jovem, tão destemido quanto irresponsável, eu também disparava críticas ácidas e impropérios no alternativo Folha da Praia, na época um semanário, que ganhou muito protagonismo na imprensa local graças ao brilho e competência do seu editor, Amaral Cavalcante. Desgraçadamente, dei ouvidos ao arsenal de futricas que corroía o ambiente cultural e, doido por uma briga, mesmo as que não me diziam respeito. Bati e levei. Mas quem quiser a história completa, veja no programa. Tenho outras e boas histórias de Joel – e com Joel – mas deixarei para mais adiante. Hoje, já que trouxemos o bardo sergipano à baila, trago algumas pérolas de um dos seus livros, O Presidente no Jardim, de 1991. Pílulas para serem consumidas como a delícia de um uísque e um punhado de amendoim torrado, como gostava o autor. Compartilhe: [...] Saiba mais...
28 28America/Fortaleza julho 28America/Fortaleza 2023Compartilhe: Por Luciano Correia (*)   Pra começo de conversa, favor não confundir com Outubro Rosa, uma campanha de forte apelo midiático que visa alertar as mulheres e a sociedade sobre a importância da prevenção e do diagnóstico precoce do câncer de mama e de colo do útero. Esta, tem salvado vidas e prestado um bem inestimável às mulheres em todo o mundo. Já a onda pink que ora borra as manchetes, apesar do frisson que vem assanhando até gente insuspeita pelos quatro cantos, não é rigorosamente uma novidade, posto que a estrela principal do bafon é uma senhorinha nascida em 1959. Se você faz parte deste planeta em chamas e costuma ligar um rádio ou TV, ou bisbilhota redes pelo menos uma vez por dia, sabe bem que me refiro a uma das mulheres mais cobiçadas de todos os tempos, uma moça chamada Barbie. Na verdade, a cobiça referida é virtual, um fetiche construído com precisão cirúrgica para servir a gula desses taradões incorrigíveis, que, é claro, jamais viram a Barbie como uma inocente boneca. E creio eu que nas próprias intenções de quem pariu a beldade estavam embutidas, nas entrelinhas dos desejos ocultos, a erotização da loira para consumos múltiplos – sexual, comércio de utensílios, roupas etc. Freud também explica isso, além de tudo que já explica. A sessentona Barbie se atualiza nesses anos todos em uma penca de produtos da indústria cultural, alimentando seu imaginário com novas e novas ações midiáticas, e na venda das bonecas em si, com mais de um bilhão de exemplares vendidos. De novo mesmo nessa onda rosa atual, só a capacidade de renovação do mesmo repertório, o êxito na forma de requentar uma velha história e ofertá-la, com cheiro de tinta fresca, ao museu de grandes novidades, como cantava Cazuza. Em nome desse novo sucesso da parada, vi gente de todas as procedências, até do jornalismo tido como objetivo e informativo, vestir-se de rosa e decorar ambientes em homenagem ao filme que estronda as bilheterias do mundo inteiro. Ao pequeno Jão Cabeça Quente, um moleque que ilumina minha vida há quatro meses, eu não tenho sabido explicar que o tema relevante da cultura no mundo inteiro, nesse momento, é a recente encarnação da Barbie nas telas do cinema. De todo modo, uma constatação: de tão inserido na sociedade do espetáculo, o fenômeno cai nas infalíveis previsões de outro pós-moderno, o artista Andy Warhol, e também parece cumprir a sina dos 15 minutos de glória. Nessa justa hora, seguramente, os fornos de Hollywood assam o próximo pão pra alimentar o circo. E logo teremos um novo e estupendo sucesso de bilheterias. Compartilhe: [...] Saiba mais...
13 13America/Fortaleza julho 13America/Fortaleza 2023Compartilhe: Por Luciano Correia (*)   Ariano Suassuna gostava de contar uma história sobre um velho contador de causos, desses que tiram leite de pedra pra não perder o centro das atenções. De qualquer coisa ele puxava assunto. E quando não havia assunto, ele inventava. Certa vez, do nada, no meio de uma sala cheia, ele perguntou: “Eitha, vocês ouviram um tiro?”. Evidente que ninguém ouviu nada. Mas era o suficiente pra ele começar uma nova história: “Pois é, por falar em tiro…” E disparava suas lorotas sem fim. Não sei porque, mas essa história me levou a uma fake news que circulou em Sergipe nos últimos dias, a propósito de um ciclone que ora varre campos e cidades do Rio Grande do Sul, com estragos minimizados, felizmente. O ciclone gaúcho, de verdade, assanhou as mentes férteis e desocupadas locais que vivem desse expediente de espalhar mentiras, não só as inofensivas, mas as que implicam em danos coletivos, mesmo que apenas psicológicos. Se o tiro do loroteiro de Ariano me fez lembrar do ciclone sergipano, a lenda daqui me remeteu a um outro ciclone, este verdadeiro, que vivenciei em Cuba em 1989, nos três meses em que vivi na ilha. Éramos 17 colegas de vários países do mundo, alunos de uma Especialização em Economia e Relações Internacionais na Universidade de Havana. Faço graça com o meu ciclone habanero porque, de fato, não lembro de maiores danos. Até porque a região era acostumada com coisa mais grossa, não ia se abalar com três dias de ventania acelerada. Mas um moleque nordestino que só conhecia, até então, os redemoinhos que às vezes irrompiam em nossas peladas nos campinhos de areia, foi um fenômeno. Lembro ainda que o quarto em que estava morando, virando para o Malecón, recebia toda a brisa do Golfo do México, turbinada pela energia do tal ciclone. Um buraquinho na vidraça do apartamento cuidou de fazer soprar o vento nas 24 horas dos três dias, fazendo um assovio em uma nota só, para eu jamais esquecer a melodia dos ciclones. Dito isso, hão de me perguntar: e essa foto sem camisa, escrevendo, bebendo e fumando, o que tem a ver? Então, diante da necessidade de terminar a monografia, aproveitei para passar meus dias de ciclone trancado no quarto do hotel, avançando no texto, fumando um cigarro cubano sem filtro que na época me apetecia, e mordendo um rum Bucanero, mais barato do que a Havana Club. A foto é como a história do velho de Ariano: por falar em tiro… Compartilhe: [...] Saiba mais...
6 06America/Fortaleza julho 06America/Fortaleza 2023Compartilhe: Por Luciano Correia (*)   Voltando ao tema de livros, trago na coluna desta semana uma crítica que fiz já há alguns anos, mas que segue atual: a nova safra de escritores cubanos. Pedro Juan Gutiérrez, quando surgiu na nova cena literária da ilha, causou rumor e fúria, mas só fora do próprio país. Nos quatro cantos do mundo, no entanto, fez um sucesso extraordinário. Virou uma espécie de novo Hemingway, um queridinho de feiras literárias, da Flip de Paraty aos melhores saraus europeus, mas jamais deixou-se seduzir pelo brilho das tentações. Namorou outras mulheres nórdicas, mas, como advertia nos seus livros, seguiu fiel às negras de Havana Velha. Hoje Gutiérrez anda um pouco ausente da mídia mundial – da cubana continua ignorado, desde o início – talvez porque cada vez mais se dedica à pintura, jogando a literatura para um segundo plano. Mas a força de todos os seus livros vale essa mirada na crítica que produzi, na época, para o site da UFS.     Trilogia suja de Havana (Trecho) “Precisava colher um pouco de carqueja-amargosa para um descarrego. Tinha de fazer uma limpeza no meu quarto da cobertura porque nos últimos dias senti duas vezes um leve perfume de mulher. Como se o hálito desse espírito passasse ao meu lado. E isso me deixa louco. Não é bom ter espíritos escuros rondando em volta”. O Rei de Havana (Trecho) “Foi andando até o Malecón. Uns barris de cerveja a granel. Estavam preparando para o Carnaval. Comprou um pouco de cerveja barata. Tinha gosto de vinagre. Bebeu. Comprou mais. Bebeu. Gastou metade da grana. Ao entardecer começou a chegar mais gente. Acabou-se o dinheiro. Queria continuar bebendo. Em volta do barril formou-se um grande grupo de gente querendo comprar cerveja. (…) Enfiou-se no meio deles. Estavam suados e cheiravam forte. Eram quase todos negros, musculosos, cheirando a suor, agressivos, se apertando uns contra os outros, emitindo com violência o seu bodum, de lenços vermelhos, colares de candomblé. Rey, metido naquele alvoroço, distribuía cotoveladas.” Animal tropical (Trecho) “Assim é. A vida é muito mais complexa que a literatura. Mas também é menos intensa. A literatura tem de avançar com excesso de velocidade para manter a tensão. Do contrário seria uma viagem sonolenta e aborrecida. Selecionam-se fragmentos, escreve-se e trata-se de não aborrecer. Enfim, o único guia com que conto é a intuição. Um pouco de intuição. E isso é muito pouco. (…) Flutuava entre nós dois um vapor melancólico. Indefinido e cinzento, mas melancólico. Era inevitável. Tentamos esquecer dançando, conversando com amigos, rindo, mas voava sobre nós, silencioso, o anjo da tristeza.”   Compartilhe: [...] Saiba mais...
29 29America/Fortaleza junho 29America/Fortaleza 2023Compartilhe: Por Luciano Correia (*) O mar chegou pra mim como por encanto. Na verdade, me deram um rio por mar. Eu tinha aí pelos cinco ou seis anos e ainda vivia na doce Macambira, onde os banhos nos tanques e naquela mágica cachoeira faziam a festa de minha infância. De tempos em tempos Papai enchia nossa bela Rural Willys com seus cinco filhos para nos levar ao dentista. Numa das vezes, lembro de Mamãe me pegar pelo braço numa manhã iluminada por esse sol nordestino, na Rua da Frente, apontar para o leito do rio Sergipe com a Barra dos Coqueiros ao fundo e anunciar: “aí está o mar”. Acostumado com a mansidão das águas do Tanque Grande e do Açude de Tidinho, me dei por satisfeito com aquele turbilhão agitando a corrente. Enfim, foi o jeito possível de ter um mar. Muitos anos depois vim morar em Aracaju justamente na Rua da Frente, ao lado do antigo Mobral, a 50 metros da antiga Secretaria de Educação. Éramos 11 calouros da Universidade Federal de Sergipe no ano de 1979. Ainda lembro de uma sexta feira em que o colega Gilson Capitão chegou da aula todo eufórico trazendo a novidade: o top less, moda que andava agitando a juventude dourada do Posto 9 de Ipanema, no chamado Verão da Abertura, havia chegado a Aracaju. No sábado, partimos todos logo cedo em direção ao local onde já há alguns dias acontecia essa demonstração de modernidade de nossa Aracaju. Ficava na Coroa do Meio, que na época era um deserto de dunas e restingas. Fomos todos a pé, evidentemente, pois não havia dinheiro para uma passagem de ônibus a mais no orçamento. Chegamos ao Colodiano, que era o antigo nome do local, perto de onde se criou a Praia dos Artistas. Lá estavam elas, as meninas. Na verdade, como vou contar? Hoje em dia, com a patrulha do politicamente correto, sacrificamos a objetividade dos fatos em prejuízo da narrativa. Mas o certo é que as ousadas banhistas eram, digamos assim, profissionais do sexo. Putas do Samburá, um cabaré decadente que funcionou muitos anos na rua Nestor Sampaio, quando essa via ainda era também um deserto, com pista de terra batida. O espetáculo observado não tinha o charme e a beleza das meninas do Rio, mas satisfazia nosso tesão e desejo de estarmos antenados com esta última maravilha da civilização: o livre e liberado banho de mar das meninas do Samburá. Hoje digo sem errar, os pechitos eram só a desculpa para nós, meninos do interior, ter motivo para ir à festa do mar. Era disso que se tratava: o sol a pino, bronzeador Coppertone, corpo à milanesa, um pique descomunal e… tchibum! A delícia das ondas. Pouco depois troquei minha adorável república da Ivo do Prado pela residência universitária da UFBa, num dos endereços mais tradicionais de Salvador: o Corredor da Vitória. Além de nossa praia particular, o Shangri La, situada 258 degraus abaixo do nosso quintal, uma área de pedras onde colegas desciam para tomar banho nus e fumar um baseadinho de fim de tarde. Ainda em Salvador, no mesmo endereço, era comum a gente descer a ladeira da Barra e ir descontar o stress do dia no pôr do sol do Porto da Barra – oxe!… e estudante jovem, na Bahia, tinha stress? Cheguei a ver Caetano e Gil algumas vezes. O mar seguia sendo um fetiche, ainda mais aquelas águas calmas e cristalinas da Baía de Todos os Santos. De volta à Aracaju, em meados dos anos 80, e sempre sonhando com o mar, li uma entrevista de Jane Fonda na qual ela dizia que dormia todos os dias com um travesseiro que simulava o som das ondas. Foi o bastante para me lançar o desafio: se ela, atriz rica e famosa, dorme com uma traquitana falseando o som das ondas, eu, pobretão atrevido, vou buscar um cantinho pra mim em alguma pirambeira da costa aracajuana. E assim foi feito, à custa de um sacrifício que levaria mais três ou quatro parágrafos e que, por ser sacrifício, vou poupá-los. Quando vim morar na antiga Rodovia Sarney, esse canto da cidade era um lugar remoto, improvável, portanto, pra se viver. Mas depois foi ganhando um certo charme, porque grande parte dos condomínios eram de alto padrão. Não exatamente o meu. Certa vez o falecido jornalista Zenóbio Melo veio tomar uns tragos na minha cozinha e, com seu jeito sem-cerimônia, exibiu todo seu desencanto: “Você disse que morava num condomínio na Sarney, mas isso aqui parece o Marcos Freire IV”. Ele tinha alguma razão, mas foi o único jeito de encontrar meu mar em Aracaju. Como todo menino do interior, curioso pelas coisas que não existiam no nosso torrãozinho, sigo encantado com suas dunas, a larga faixa de areia, cor das águas, belezas e mistérios do mar. Compartilhe: [...] Saiba mais...
22 22America/Fortaleza junho 22America/Fortaleza 2023Compartilhe: Garrafas ao mar, cantava João Bosco num dos melhores discos da MPB. Por elas e pelas águas onde rolaram correram muitas histórias, de amor aos negócios, de guerras e conquistas. O mar foi a primeira grande free way do mundo, autobans lineares, sem buracos nem pedágio, sem barreiras de fronteiras, pelo contrário, ligando mundos distintos e remotos. Os portugueses foram grandes dominadores de suas regras e mistérios, que legaram ao país dos patrícios um império e a extensão de seus tentáculos para vários continentes. E fez a primeira grande operação da globalização, trocando culturas e comidas, modos de ver e falar, de sorrir e cantar, de construir e destruir. Essa lembrança do mar, como estrada primeira da globalização, sempre me assalta nas caminhadas que faço há mais de três décadas, como contei na coluna passada, desde que decidi vir morar ouvindo seu marulho. E os motivos são os mais prosaicos, pois que a partir de coisas trazidas de outros cantos, quinquilharias as mais curiosas, desde embalagens de sorvetes, refrigerantes, belas garrafas de uísque, latas de iguarias que mais parecem obras de arte. Os objetos navegam mares distantes e trazem notícias de lá, de culturas distintas, seus utensílios e modos de lidar com a arte de viver. Em minhas caminhadas há mensagens de terras do Oriente, com seus desenhos mágicos que devem conter expressões como “modo de usar” ou “consumir em até 48 horas”, banalidades que tais, para meus olhos de criança curiosa, soam como poesia concreta, modernismos gráficos de gentes mais desenvolvidas. Mas chegam tesouros páticos, que têm muita serventia para os que precisam e até para quem não se acha, como eu, que já levei baldes, tablados de madeira e vasilhames que minha mulher trata de jogá-los no lixo, tão logo eu desapareça de sua vista. Além de coisas largadas por navios, há também pedaços mesmo de embarcações, como gradeados de madeira, suportes e caixões mais pesados, sempre úteis a qualquer ser humano que professa a fé de que “quem guarda o que não presta, sempre tem o que precisa”. Nesse inventário de tolices, não vale citar o ramerrão, o lixo trivial que carimba nossa má educação por esses nossos litorais. Cascas de laranja, abacaxis inteiros, tomates e melancias dão na praia sem que a gente saiba, neste caso, se são frutos da incúria local, nacional ou internacional. Assim, excluam de minha lista essa basura sem aura nenhuma, embora, vá lá, já topei com tantos alimentos que dariam poderosas sopas ou sortidos cozidos. Óculos de grau, então, já apanhei dezenas, alguns entregues a meu amigo Mané Veneno, que usa em desfiles pelas ruas do seu amado conjunto Augusto Franco. Me refiro aqui a peças que carregam em si algumas histórias mais fortes ou simbólicas, algo que ensejam o culto à Yemanjá ou a uma noite de amor febril, deixando, no primeiro caso, frasquinhos cheirosos de alfazema ou, no segundo, calcinhas abandonadas a propósito de uma fuga ligeira. Quantas mulheres lindas já imaginei ao topar com essas provas do sexo rápido entre, possivelmente, dois fortuitos amantes!? Se as montanhas encontradas na areia diariamente são, para a limpeza pública, a mesma matéria que abarrota os carros da empresa coletora, medida em toneladas e reais, para mim passa por esse filtro prévio, essa curadoria muito particular que representa meu olhar sobre o que o mar quer dizer com cada tralha que aporta no meu pequeno pedaço que me cabe.   ____________ (*) Jornalista e presidente da Fundação Cultural Cidade de Aracaju (Funcaju). Compartilhe: [...] Saiba mais...
2 02America/Fortaleza junho 02America/Fortaleza 2023Compartilhe: Desde que me afastei da academia (leia-se universidade) para me dedicar a outras atividades (primeiro à Fundação Aperipê, depois à Fundação Cultural Cidade de Aracaju), decidi deixar um pouco de lado as conspiratórias teorias que explicam o jornalismo brasileiro do século XX para mergulhar diretamente na própria matéria, sem intermediários. Assim é que nos últimos anos tenho passado a limpo grande parte da obra de Joel Silveira (sergipano, considerado o maior repórter da imprensa brasileira de todos os tempos), Josué Montello, Laurentino Gomes, Sebastião Nery e outros tantos da interface com a literatura, como Jorge Amado, Marques Rebello, Gilberto Amado etc. Por essas linhas eu tenho composto um mosaico sortido de visões ricas e privilegiadas da história do Brasil, do Império aos períodos mais contemporâneos. Foi assim que resolvi iluminar um pouco uma fase especialmente importante da vida brasileira, o governo de Getúlio Dornelles Vargas. O fiz pelas mãos de Lira Neto, possivelmente o nosso maior biógrafo em atividade, pela densidade das obras anteriores, que vão de Padre Cícero, Castelo Branco, a cantora Maysa e até o nosso sagrado samba. Coincidência ou não, devorei os três volumes sobre a vida de Getúlio no ano passado, quando nos debatíamos para derrotar o fascismo e trazer de volta um populista nos moldes do caudilho gaúcho, mas com a mesma grandeza histórica. Por óbvio, as comparações vinham a cada capítulo das mais de 1700 páginas que compõem os três volumes, pelo fato de que são os dois maiores expoentes da política brasileira desde a implantação da República. Tivemos o charme e o arrojo de um Juscelino, alguma contribuição de um Itamar aqui ou ali, o céu e o inferno de um FHC (mais inferno, é verdade) e nada mais. Lula, para o bem e para o mal, encarna um espírito muito parecido na visão do mundo e da política, nas virtudes e defeitos, do homem que nos governou na ditadura e na democracia. Getúlio foi o líder que trouxe a indústria, a modernização do país e os direitos trabalhistas. Saiu da vida para entrar na história no episódio do suicídio, recurso que ele cogitara algumas vezes ao longo da vida e de cada crise que enfrentou, mas o que ficou para a posteridade foi a imagem do pai dos pobres, e, também, do ditador. Lira desfruta de tamanho reconhecimento como biógrafo, um consenso entre historiadores e críticos, porque trabalha sério, tem fôlego e escreve bem. É fascinado pelos seus objetos, como em geral acontece. Os livros não são compêndios sobre a história do Brasil, mas uma mirada minuciosa e farta de documentos em um dos períodos mais profícuos de nossa história. Assim, é natural que o Getúlio descrito sai do texto quase como um herói injustiçado. E talvez tenha sido tudo isso mesmo: herói, injustiçado e ditador, um homem irreversivelmente apegado ao poder, capaz de exercê-lo com maestria, equilibrando amor e crueldade na proporção da necessidade de se manter no comando. Ao concluir os três volumes, fui ver a opinião dos críticos qualificados, da imprensa tradicional aos programas no You Tube. Historiadores mais robustos são isonômicos em apontar o grande líder na mesma medida do homem tacanho, corajoso para uns e conivente com outros, incluindo parentes metidos em coisas erradas. Ou seja, se os autores não adentram a alma do homem Getúlio Vargas, como fez Lira, são meticulosos em esquadrinhar com ciência e método o papel deste político até hoje tido como o grande defensor do povo. Mergulhar na experiência da era Getúlio no mesmo momento em que vivíamos a agonia da última eleição me levou às necessárias comparações, portanto, que reforçaram as certezas fundamentais para a luta dos democratas, mesmo os que, como eu, ignoram diferenças profundas com o PT para enxergar em Lula o único líder no contexto de uma retomada das conquistas dos trabalhadores, de uma melhor distribuição de renda e justiça social. Mesmo cientes dos arroubos e desvios éticos e morais que motivaram o desgaste do projeto das esquerdas e, em consequência, a abertura do caminho para a consolidação do fascismo bolsonarista. As contradições e até mesmo violência – principalmente no caso da ditadura do Estado Novo – são modos de ser e de agir na política que denunciam nosso estágio primitivo para consolidar uma democracia moderna e consistente, depois dos períodos de colônia e das décadas republicanas muito mal conduzidas. O resultado é o que insiste até hoje: jamais fomos capazes de construir uma democracia de fato. Temos, a muito custo, arremedos de períodos mais transigentes, mas sempre com pouca transparência, manutenção de privilégios e a total exclusão dos contingentes de pretos e pobres. E ainda assim, com reveses como o que vimos atravessando desde o golpe perpetrado pelo Congresso contra o governo Dilma Roussef, do lodaçal humano de um Michel Temer à inacreditável aberração de um Bolsonaro. Mas o que salta evidente nos dois casos – nos dois momentos da história brasileira, de Getúlio e Lula – é a ação deletéria do que há de mais tacanho no conjunto da humanidade, a reunião das gentes da pior espécie, do lúmpen ignaro das ruas aos engravatados que constituem hoje a elite econômica do país, alojados nos melhores postos da burocracia. Os verdadeiros donos do estado brasileiro, ali chegados pelo faz-de-conta de uma meritocracia fajuta, ou nem isso, fruto da corrupção que segue sendo o motor espiritual da nação canarinha, indistintamente, de A a Z, das igrejas aos palácios, dos tribunais às universidades, em todas as faixas da população, dos anciãos às mocinhas de 15 anos. No caso de Getúlio, depois de voltar pelo voto ao comando do país, sofreu uma conspiração sórdida jamais vista num país especialista em quarteladas e traições, com o resultado trágico que conhecemos. Quanto a Lula, para que a história não se repita como farsa ou tragédia, só resta a ação dos democratas, os mesmos que deixaram de lado as diferenças para pôr um fim ao governo dos bandos acima referidos, que se mantenham atentos e fortes na vigilância do normal, como cantava Zé Ramalho. O caminho é longo e incerto, mas é a única possibilidade de que o Haiti não seja aqui, como alertou Caetano.   ____________ (*) Jornalista e presidente da Fundação Cultural Cidade de Aracaju (Funcaju). Compartilhe: [...] Saiba mais...
18 18America/Fortaleza maio 18America/Fortaleza 2023Compartilhe: Estive em São Paulo há algumas semanas e voltei com a impressão que essa cidade maravilhosa – essa, sim, maravilhosa – perdeu a guerra contra a civilização. A ser verdade, inclusive, deixa de ser maravilhosa, e é o caso em questão. Conheci essa megalópole mundial em 1981, vindo de um encontro de estudantes em Goiânia, aceitando o convite de colegas da USP que viajavam num ônibus fretado. Como eram as férias de julho, não tinha pressa. Perambulei por quase três semanas naquela cidade encantadora, nas farras dos colegas do movimento estudantil e em shows gratuitos. Só voltei quando acabou o dinheiro. Desde sempre, me apaixonei pela sua alma cosmopolita, fria, cujas rádios tocavam jazz à noite. Até hoje me assombro com sua exuberância cultural, nem parecendo uma cidade de um país pobre, tão distante das realidades que encontramos na Europa e Estados Unidos. Sua pujança cultural, evidentemente, está diretamente subordinada ao desenvolvimento econômico que fez dela e do Estado de São Paulo a locomotiva do Brasil. Por tudo isso, São Paulo sempre falou uma linguagem de cidade do mundo, na alegria de suas novidades e na tristeza dos seus problemas. Mas nada que ela mesma, empresa eficiente, conectada às grandes metrópoles do planeta, não conseguisse resolver até se deparar com novos desafios. A dialética de um lugar em moto-contínuo. Mas já há algumas décadas sofre as dores do maior problema do país, a selvagem desigualdade que põe lado a lado miseráveis morando nas ruas e bilionários vivendo nos seus céus. A paradoxal geografia paulistana permitia que mendigos e milionários dividissem o mesmo endereço da Oscar Freire, uns no topo do mundo, outros em casas de papelão edificadas nas calçadas. A estúpida injustiça social que rege todas as instâncias do país operou o previsível: concentrou os eleitos de Deus e democratizou os sofrimentos. A Cracolândia virou franquia espalhada por vários bairros, a partir do Centro, irradiando uma nação de zumbis. Nessa minha última viagem, flagrei o descontrole, a perda de controle e da esperança de melhoras. Na região do Brás e da 25 de Março trombadinhas tomam na tora à luz do dia. Avançam sem medo sobre suas vítimas. Lojas e até farmácias são saqueadas ao meio-dia, sem reação de ninguém. A polícia praticamente não existe. Os cidadãos estão entregues à lei da selva, o salve-se-quem-puder que sempre funcionou em todos os campos da vida brasileira, mas com certo disfarce. Aqui, os pruridos acabaram. No horror e abandono a que esses seres invisíveis e esquecidos por todos foram jogados, não restou mais regra nem pacto mínimo de convivência. São Paulo, a bela cidade em revolução permanente, perde a luta contra a barbárie e se torna, enfim, mais uma vítima da tragédia brasileira, um lugar que não deu certo nem dará tão cedo. ____________ (*) Jornalista e presidente da Fundação Cultural Cidade de Aracaju (Funcaju). Compartilhe: [...] Saiba mais...
4 04America/Fortaleza maio 04America/Fortaleza 2023Compartilhe: Algumas coisas na vida são inevitáveis. As perdas, por exemplo. E aqui me entendam por perdas tudo aquilo que um dia vai embora de nossa vida, pelos desígnios de Deus – fica combinado aqui que Deus existe, para evitar debates desnecessários no contexto dessas mal traçadas linhas – ou por imposições outras da lógica, do bom senso, da tecnologia ou pelo simples desaforos da mulher em favor da faxina de todos os seus bens culturais adquiridos em décadas. De minha parte, cumpro o doloroso dever de dizer que chegou a hora de me desfazer das centenas de CDs, calculo em dois ou três mil, por aí, que acumulei ao longo de minha vida musicada pelas ecléticas trilhas do mundo. A rigor, o CD estreou em minha vida em 1988. O jornalista Ivan Valença, pioneiro de traquitanas eletrônicas para cinema e música na provinciana Aracaju de então, já havia me acenado anos antes com a oferta de compra de um aparelho de videocassete, que ele importara não-sei-de-onde, um equipamento Toshiba com controle remoto por fio e que, nos seus momentos temperamentais, fazia o favor de dar choque, passar corrente elétrica para este involuntário paciente do eletrochoque dos hospitais psiquiátricos. Na conta do bruxo Ivan, fui o quarto proprietário de um VHS da nossa belacap. Com a mesma retórica reluzente, me vendeu aquele que seria um dos primeiros aparelhos de CD que desembarcaram na cidade, no ano fatídico já mencionado. Comprado o equipamento, fui à Modinha Discos, na rua Laranjeiras, escolher meus três primeiros rebentos: Herbie Hancock, Wayne Shorter e um show ao vivo de Mercedes Sosa no estádio da Bombonera, uma das sete maravilhas da música em todos os tempos. Fui da geração dos vinis, desde que Papai comprou nossa primeira vitrola em 1970, com um pacote de Lps que incluía Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Jerry Adriani, The Fevers e um disco instrumental da banda do Canecão executando o melhor do carnaval daqueles tempos. Devo ter empregado um importante capital de minhas mesadas na compra dos Alceus, Zé e Elba Ramalho, e coisas raras do que um dia se chamou MPB, raridades hoje calculadas em centenas de reais e que doei a um amigo muitos anos depois. Se me separei dos bolachões sem maiores culpas, assim foi com meu valioso acervo de fitas VHS, dos melhores pornôs a espetáculos em Cuba, futebol e carnaval. Já com as fitas K-7, maior paixão de minha adolescência/juventude, não foi tão fácil. Despejei no lixo do condomínio algo em torno de 1.500 fitas, aquelas compradas em lojas ou cópias de álbuns que eu já possuía em LP ou CD. A razão é simples: as fitas são obras autorais, nas quais o ouvinte imprime seus gostos pessoais, com a novidade de gravar suas preferidas, uma curadoria musical, enfim. Para além disso, há tesouros que ninguém dá valor, mas que a mim soam caros: gravações da programação noturna das emissoras de rádio de São Paulo, Havana ou São Luís do Maranhão, lugares por onde passei com tempo suficiente para prestar atenção nas maravilhas que tocavam no rádio. Ou ainda, os emocionantes gols da minha Associação Olímpica de Itabaiana. Hoje o rádio é business e cultura pop. Pra quem gosta, excelente. Para os que buscam diversidade, acabou. Mas, enfim, com tantas plataformas de streaming e pen drives na praça, ficou trabalhoso recorrer aos meus queridos Compact Discs. Resisti por anos porque não achava uma alma digna de entrar nessa morada musical, que para mim representa afetos e histórias, mas, como tudo na vida, o dia D chega para todos. Nessa semana, comecei a embalar meus filhos queridos, ainda me enganando com a remota possibilidade de que ficarei com alguns para ouvir no meu último aparelho de CD, uma geringonça que arranquei do meu penúltimo carro e adaptei para ouvir em casa, a peso de ouro, num malandreco de Itabaiana. Vocês imaginam o que é descartar cerca de uns 30 discos só de Caetano Veloso, outros tantos do esplendoroso Gil, mais as obras completas de Chico, com Ópera do Malandro e coisas que tais? Depositar numa caixa de papelão do G. Barbosa as relíquias que garimpei de Tom Waits, a voz maviosa e apaixonante de Paloma San Basílio, trilha de amores cubanos na minha temporada por lá, ou os clássicos que aprendi a ouvir e gostar no programa de Petrônio Gomes: Dvorák, Carmina Burana e a Valsa dos Patinadores. Tirá-los de minha convivência de décadas e despachá-los para entrega, é como expulsar de casa o canto de Geraldo Azevedo nas noites do Clube da Sexta, no DCE da UFS, ou enxotar friamente de nossa intimidade a doçura da dupla Elza Soares/Miltinho executando um dos melhores discos da história da música brasileira. Fiquei com pena das caixas com as obras quase completas de Ray Charles e Nat King Kole, esse cantor estupendo que conheci através de Papai. E o songbook de Dorival Caymmi, os mais de 30 exemplares da turma da Buena Vista Social Club e outros expoentes da música caribenha? Em 1998 eu caminhava pelas ruas da cidade do Porto, em Portugal, quando um som simplesmente enlouquecedor inebriou a rua e acariciou meus ouvidos. Entrei na loja e perguntei quem cantava. Era um negro americano chamado Ben Harper, mandando a comovente Suzie Blue, um desses sons que nos arrebatam pela vida inteira em fração de segundos. Comprado por uma pequena fortuna em euros, é um dos mantras sagrados que será levado para doação. Como dizia Belchior, meu coração é como um vidro. Está partido de tanta saudade. ____________ (*) Jornalista e presidente da Fundação Cultural Cidade de Aracaju (Funcaju). Compartilhe: [...] Saiba mais...
24 24America/Fortaleza abril 24America/Fortaleza 2023Compartilhe: Costumo chamá-lo de Labareda, um gatinho ainda adolescente, em fase de crescimento, mas valente como o pai e o avô, que também viveram nas cercanias da minha casa. O avô, da mesma cor de ouro, era um animal no sentido estrito. Vivia pra guerrear. Brigão e batedor, como todo valente, também apanhava. Por isso, vivia com a cara latanhada, cheia de arranhões e feridas. Como os matadores de aluguel e valentões em geral, morreu cedo, de briga, claro. O pai foi a mesma coisa. Sumiu sem deixar rastro. Busquei notícias na Rádio Corredor do condomínio, mas nenhum dos informantes soube dar conta de seu paradeiro. O neto, este aí, o Labareda, seguia a mesma trilha do macho alfa, mas com certa doçura no olhar e um jeito carente de pedir atenção. A lei das ruas é cruel e o mundo trata mal a todos, de homens a animais. Além do meu Tom, animalzinho que me ensinou o sentimento da compaixão e a compreender a dor dos que sofrem, cuido de mais 11 gatos que já estão acordados quando acordo, todos os dias, religiosamente, aí pelas quatro ou cinco horas. Traduzindo em custos: é um saco de ração de 10 kg a cada 15 dias, a 100 reais cada, que gasto com satisfação, porque sou pago com a alegria/algaravia que os 11 me retribuem toda vez que balanço a lata, três vezes ao dia. Labareda é um deles. Encrenqueiro, gasta mais tempo nas querelas com os colegas do que propriamente em comer. Um gênio ruim, diriam uns. Meu condomínio é um microcosmo da pior sociedade que este país revelou nos últimos quatro anos, salvo por uma ou outra exceção. Gostam do fato de não haver ratos infernizando armários e cozinhas, mas ignoram que são os gatos os guardiões de sua tranquilidade. Ignoram também que os bichinhos precisam comer. Ninguém dá de comer aos bichanos, salvo uma ou outra dona de casa mais comovida que despeja restos de almoços na calçada (do vizinho), cumprindo muito mais um desejo de se livrar do lixo caseiro do que uma ação caridosa. Hoje cedo dei com Labareda desfigurado, sem um olho, gemendo e respirando com dificuldade. Não sei se foi atropelado ou se cometeram alguma violência contra ele. Aqui, as duas ocorrências são comuns, somadas ao nefasto e criminoso uso de chumbinho, que de vez em quando nos faz topar com gatos mortos nos gramados, rijos, de olhar petrificado, como a duvidar de tanta crueldade humana. Tentei dar um leite e um pouco de ração, mas ele se manteve impassível, gemendo de dor e exibindo uma melancolia de cortar coração. Depois, com dificuldade, foi se abrigar num cantinho e deitar pra morrer, como fizeram outros gatinhos cuja vida e calvário eu acompanhei como distante tutor. A essa altura, diante de tanto sofrimento, prefiro recomendá-lo a São Francisco de Assis. Quem sabe em outro mundo sua vida seja mais leve. Observação:  Esse texto foi escrito na tarde do domingo. Na madrugada desta segunda, encontrei Labareda na minha varanda. Ele não resistiu e finalmente descansou de sua vida infeliz neste mundo dos homens.   ____________ (*) Jornalista e presidente da Fundação Cultural Cidade de Aracaju (Funcaju).   Compartilhe: [...] Saiba mais...
15 15America/Fortaleza abril 15America/Fortaleza 2023Compartilhe: No domingo passado foi decidida a maioria dos campeonatos estaduais de futebol. Em Belo Horizonte o Atlético derrotou o América numa partida que contou com um público de 57.082, dos quais 47.966 pagaram ingresso e propiciaram uma renda de R$ 3.712.855,65. Já no Maracanã, o Fluminense massacrou o Flamengo e arrebatou o título carioca num jogo com 65.075 torcedores, dos quais 60.044 pagaram ingresso e deram uma arrecadação de R$ 4.810.051,50. Em Aracaju, na partida que classificou o Confiança para a final do nosso campeonato regional, contra o Lagarto, foi registrado um público de 4.847 presentes, dos quais 3.341 pagaram ingressos, resultando numa renda de R$ 91.425,00. A sopa de números dispensa opinião e oferece, a partir das estatísticas, um retrato fiel e lamentável da condição do nosso futebol. Vamos a Minas, primeiramente. No Mineirão, a renda apurada foi 40,61 vezes a do Batistão e público 11,7 vezes superior ao nosso. O índice dos não pagantes, aqueles que vão desenvolver alguma atividade, como policiais, área médica, funcionários da federação e “outros”, em BH foi de 14%. Aqui, 31% dos que se dirigiram ao Lourival Baptista no domingo não pagaram um só centavo para ver a semifinal. No Rio a diferença é ainda mais gritante: enquanto a arrecadação da partida superou a do “Sergipão” em 52,6 vezes, a quantidade de público foi 13,42 vezes maior. Já o índice dos que entraram de graça não passou de 7%. Um detalhe para ser esclarecido por especialistas em números e na tradição do futebol sergipano: na semifinal da véspera, entre Sergipe e Itabaiana, o público pagante foi 3.335 pessoas, das quais 368 entraram sem pagar (índice de 11%) para uma renda de R$ 55.675,00. Sou um antigo apaixonado pelo futebol sergipano, que acompanhava pelas transmissões da Equipe Campeã da Rádio Cultura, liderada por Carlos Magalhães e com um monumental elenco de narradores, repórteres e comentaristas, como Aroldo Lessa, Wellington Elias, José Antônio Marques, João Batista Santana, Gilson Rolemberg, Pedro Luís, Alcei de Carvalho e tantos outros. Essa turma era encarregada de fazer do futebol rigorosamente um espetáculo, com transmissões calorosas que recriavam essas partidas com ainda mais cores e vibração, graças ao talento e competência de cada um. Dentro do campo, ajudavam a consolidar verdadeiros mitos a destreza de jogadores como Ruiter, Vevé, Canhoteiro, Debinha, Samuca, Evangelista, Luiz Carlos, Joãozinho, Horácio, Marcelo, Targino, Gustinho, Tatica, Augusto, Nunes etc. Num período em que o próprio futebol brasileiro era embrionário, conseguimos êxitos importantes em certames nacionais e regionais e derrotamos grandes times do Sul-Sudeste já colocados no topo, a exemplo do Sergipe em 1967 batendo aqui em Aracaju o campeão carioca Bangu. O Confiança na Taça Brasil dos anos 60 ou o Itabaiana campeão do Nordeste e vice do Norte-Nordeste em 71. Um certame com clubes de todo país só surgiu em 72 e chamou-se Campeonato Nacional. Até então existia o Torneio Roberto Gomes Pedrosa, limitado a poucos estados, mas, com a consolidação dos campeonatos da CBF e a hierarquia estabelecida pelas séries, fomos cada vez mais empurrados para baixo, anos após anos figurando na ponta de baixo da tabela, quando não liderando a lanterna. Até chegarmos à situação atual, de só um clube na série C, com outros dois disputando a D – e sempre caindo nas primeiras fases dos mata-mata. É esta, pois, a miséria em que nos encontramos na escala do futebol nacional, enquanto Alagoas se mantém há décadas na série B, com ASA, CRB ou CSA, inclusive com uma breve passagem recente na elite da série A. Já praticamos um nível próximo de Fortaleza, Bahia ou Santa Cruz. Hoje alguns dos nordestinos pontuam anualmente na Libertadores ou Sul-Americana, enquanto nós estamos perdendo para clubes do Acre ou Amazonas, por exemplo. No Mato Grosso, estado sem a menor tradição, o jovem Cuiabá, fundado em 2001, oscila entre série A e B já há algumas temporadas, incluindo uma Sul Americana. Para mim, futebol local tem uma forte imbricação na identidade cultural de cada estado. Resistir com Sergipe, Confiança, Itabaiana é uma forma de manter nossa autoestima, um dos traços da citada sergipanidade. Nas várias cidades que morei, sempre me orgulhava ao ser parado na rua, como ocorreu em Madrid e tantas vezes em Porto Alegre, para explicar a que time pertencia aquela linda camisa tricolor que viaja comigo para onde vou. Por falar em Itabaiana, só há duas unanimidades nesta cidade: a festa de Santo Antônio e a torcida pelo seu Tremendão da Serra. Mais do que as demais místicas atribuídas à cidade (valentia, sabedoria em excesso e outras menos votadas), ser Tricolor é o que orgulha e une ceboleiros. Em Aracaju, mesmo nesse clima de decadência, é simplesmente emocionante ver o frisson causado pelas torcidas rubra ou do Dragão na fé e amor pelo seu time. Ver nossos times literalmente caindo pelas tabelas me causa um desconforto, digo tristeza mesmo, resultado inevitável de anos de amadorismo, falta de planejamento, transparência e incompetência pura e simples das sucessivas direções, sem uma única exceção em toda a história. Aliás, talvez eu esteja sendo injusto: do tempo em que comecei a frequentar o velho estádio Médici, com a federação sob o comando de Robério Garcia, tudo parecia muito mais sério e organizado. Pelo menos é o que parecia ao olhar de um menino.   ____________ (*) Jornalista e presidente da Fundação Cultural Cidade de Aracaju (Funcaju). Compartilhe: [...] Saiba mais...
6 06America/Fortaleza abril 06America/Fortaleza 2023Compartilhe: Nunca fui de fazer necrológios. Até hoje me devo textos sobre as perdas de amigos queridos que foram brilhantes no que fizeram na vida, começando pelo jornalista Fernando Sávio, que nos deixou ainda jovem, em 1989, mas já dono de si e de uma literatura moderna, o melhor texto de nossa imprensa até hoje. Foi quem nos apresentou a todos os beatniks da geração lisérgica de Kerouac, Burroughs, Ginsberg e ele, o gênio maior, Charles Bukowski – não era da geração beat, entendidos? O bukowsquiano Chico Mocó, maior cronista oral da vida boêmia aracajuana da quadra dos 70-90. O professor Luiz Alberto, doce e terno amigo, intelectual temperado por teoria, prática e coerência, uma de minhas conversas preferidas. De Marcelo Déda, outro amigo querido, que, apesar do poder e da pompa, nunca deixou de ser um amigo, dos primeiros que tive em Aracaju, cúmplice de histórias minhas; e eu também de muitas dele. Luiz Antônio Barreto, intelectual que ocupava um lugar na cultura que, ao nos deixar, não deixou herdeiros. Em matéria de conhecimento histórico e sergipanidade, ficou sem segundos, terceiros, quartos lugares. Ficou um buraco que as velhotas e velhotes que engabelam os bestas da UFS jamais ocuparam. Ontem Sergipe perdeu uma autoridade cinco estrelas, robusta, dessas que vestiam fardas das academias, do poder político e institucional do Estado. Tem tudo, pelo currículo e por tudo que fez por onde passou, para ser com justiça nome de uma grande avenida, um hospital ou universidade. Carlos Pinna de Assis, com sua cultura jurídica, bagagem política e técnica, era também um homem da cultura. O melhor seria dizer: um homem de espírito, humanista, inteligente, democrático, diplomático, um gentleman, como todos dizem. Acontece que era muito mais que isso. Durante anos não privei da convivência com ele, pela diferença de idade e dos mundos de onde vimos, embora eu estivesse paralelamente o encontrando, por exemplo, nos períodos em que trabalhei na comunicação do governo João Alves. Ele um homem talhado para o exercício do poder, senhor de protocolos e liturgias, um profissional que conferiu solenidade aos cargos que exerceu, com a dignidade de poucos que os exerceram. Eu, um outsider, militante político dos panfletários movimentos de esquerda, da geração boca suja da Folha da Praia, um iconoclasta desde a adolescência. Mas essas diferenças não impediram que nos aproximassem nos últimos anos, para além dos cumprimentos civilizados e elegantes que a celebridade do “doutor Pinna” sempre me dispensava. Pelas funções que ocupei nos últimos anos na gestão de Edvaldo Nogueira na Prefeitura de Aracaju, primeiro na Secretaria de Comunicação e hoje na Funcaju, travei com Pinna relações de trabalho que aprofundaram uma amizade que só cresceu exponencialmente. Eu, sempre incrédulo, seguro por não merecer as homenagens e a generosidade deste homem tão maior do que eu para gastar adjetivos comigo. Assim foi em alguns livros que publicamos numa parceria do Tribunal de Contas de Sergipe com a PMA, quando os “enfados” da tarefa nos obrigaram a ir algumas vezes a Salvador para tratar de assuntos editoriais na Edisa, a editora oficial do governo da Bahia. Foi quando tive a chance rara de desfrutar de quatro horas de conversa na Linha Verde, descobrindo que o advogado Pinna, como o jornalista destas mal traçadas linhas, também foi aluno da UFBa, em períodos diferentes e que, só a partir dessa constatação, descobrimos tantos amigos e referências comuns. E degustar um almoço no novamente chic Hotel da Bahia, ali no Campo Grande/Avenida Sete, por onde passei nos quatro anos em que morei na residência universitária da UFBa no Corredor da Vitória, menino pobre, com dinheiro, muito mal, pra pagar a meia passagem até a feira de São Joaquim para comprar um melão e duas bananas-da-terra para complementar a pobre ração servida na R1. Pinna sempre foi generoso comigo, seja na apresentação que fazia aos seus amigos importantes (um deles, nesse mesmo almoço no Hotel da Bahia, alguém laureado pela ONU e que esta memória corroída não recorda) ou em reuniões como na vetusta Academia Sergipana de Letras, quando me convidou para falar do meu livro sobre convergência digital e novos arranjos do jornalismo no patamar tecnológico. Outras vezes, sem pauta definida, me convidava para almoços no velho Cacique Chá, ocasião em que eu me convencia – justamente pela ausência de algum assunto específico – que fora convidado pelo instituto puro e simples da amizade. Vai embora um dos maiores homens públicos de Sergipe dessa quadra mais contemporânea, na verdade um jovem ainda com tanto a fazer na província, sobretudo no campo da cultura. Um homem divertido, alto astral, avesso a disputas renhidas: a própria elegância em pessoa, em forma e conteúdo. Vai embora um amigo querido que eu tinha tantos planos para desfrutá-lo no status conferido por ele, o de amigo. E que, pelos tantos que tenho perdido e pelos poucos de valor que têm ficado, me deixa imensamente mais pobre e triste. ____________ (*) Jornalista e presidente da Fundação Cultural Cidade de Aracaju (Funcaju). Compartilhe: [...] Saiba mais...
30 30America/Fortaleza março 30America/Fortaleza 2023Compartilhe: O título desta coluna que pretendo realizar semanalmente no Portal Só Sergipe é uma homenagem a um livro e um autor que muito me inspiram, desde o período em que decidi ir para a vida acadêmica, no começo dos anos 90. Trata-se do americano Robert Darnton, jornalista e historiador, um dos maiores especialistas em Revolução Francesa. O livro, O Beijo de Lamourette – Mídia, Cultura e Revolução, me serviu de fonte em vários momentos e até hoje segue atual, com suas análises sobre os processos de midiatização. Em outro momento pretendo voltar ao livro, mas, para hoje, a menção é apenas a título de explicar o nome da coluna. Troquei o Revolução por Ebulições, na esperança de que o caos desintegrador que carrega toda ebulição dê mais conta do mundo da vida de hoje do que a gasta expressão que outrora embalou sonhos de transformação social. Na quadra mais contemporânea, a frustração com as revoluções tem seu ápice no colapso da revolução russa e da implosão do chamado socialismo real. Este é um primeiro sintoma do cansaço do termo revolução. Um outro é o que resultou nas ebulições que produziram, após o fim da Cortina de Ferro, no renascimento do nazi-fascismo em vários países, em particular na Europa do leste, Brasil, Estados Unidos e a própria Rússia, hoje um país governado por máfias, lideradas pelo mafioso Putin. Ebulições, portanto, por ser um termo livre da carga ideológica contida no conceito de revolução. Aqui pretendo passear por todas as ocorrências que se enquadrem numa das três expressões do título, com a última autorizando o autor – por esperteza e comodidade – a falar de quase tudo. Mas quero me ater bastante ao mundo dos livros, paixão e cada vez mais ao vício que herdei de Papai, hábito que, desgraçadamente, está rareando no mundo atual. Não sei o que será de um mundo sem livros, mas sei que estamos na validade deste mundo árido. Ok, ok, estamos diante de um novo patamar em que a tecnologia é meio e mensagem, dirão os amigos moderninhos que, por comodidade e preguiça, preferem rotular os colegas de caretas e obsoletos, em vez de enfrentar a onça com vara curta. Me encanta também, desde os tenros anos da infância, o mundo mágico do cinema, que sempre tratei no meu exercício jornalístico por onde passei, lastreado, mais que pelos cânones da crítica, pela sensibilidade e alma de cinéfilo apaixonado. E a música, essa maravilhosa invenção que, se não salvou a humanidade da total selvageria, ao menos esculpiu aqui ou ali alguma alma bruta e tornou tolerável a morada nesse mundo torto e virado. Mas não há como tratar de tudo isso sem a costura da política, essa fundamental instituição de moderação social, tão velha quanto defeituosa e injusta, e ao mesmo tempo necessária para manter de pé o que chamamos de civilização, razão pela qual ainda não entramos todos pelo túnel do apocalipse final. Sirvam-se, pois, desta salada semanal de variedades.   __________ (*) Jornalista e presidente da Fundação Cultural Cidade de Aracaju (Funcaju). Compartilhe: [...] Saiba mais...
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Sobre Luciano Correia

Luciano Correia
Jornalista e presidente da Fundação Cultural Cidade de Aracaju (Funcaju).

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