Por Léo Mittaraquis (*)
“Nada é mais nocivo ao homem do que deixar-se levar para além de suas forças.”
Sêneca
Ramiro cultivava um hábito — entre tantos outros que lhe eram característicos — capaz de despertar, inevitavelmente, o assombro dos que presenciavam sua execução: atirar-se, com desenvoltura quase teatral, de costas, para fora da marinete ainda em movimento, pela porta dianteira.
O coletivo costumava cruzar a rua da adega de Adeodato, embora jamais houvesse por ali um ponto que facilitasse o desembarque. Ramiro, no entanto, tomava para si o privilégio peculiar de uma amizade antiga, nutrida em reciprocidade — ele e Ideraldo, o motorista — e dela fazia motivo suficiente para suas extravagâncias.
Recordei-me dessa trivialidade apenas porque, ontem, enquanto me dirigia à feira, deparei com um desconhecido que repetia tal façanha. Como tantas vezes ocorre, o fato presente agitou nos escaninhos da memória um outro caso, antes adormecido, convocando-o à superfície do pensamento.
Era inegável que o sujeito possuía certa agilidade natural. Ninguém ousaria contestar essa verdade elementar. E, diga-se sem exagero, aquele acrobata suburbano, ao executar sua pequena proeza, era capaz até de arrancar suspiros discretos da doce e tímida Selene, filha única de Dona Luna, doceira de renome e respeitável senhoridade.
Ora, todos os frequentadores da bodega sabiam, há muito, que Selene havia sido alçada, sem que soubesse, musa eterna de Endimião — rapaz de falas econômicas e sonhos vastos, cujo coração teimava em pulsar sempre um pouco mais depressa quando ela atravessava a rua, carregando os embrulhos de sua mãe com a graça involuntária de quem ignora o próprio magnetismo. Endimião fingia não reparar; mas seu olhar, com frequência, era apanhado repousando sobre o vulto da moça, como se temesse que, num piscar descuidado, ela pudesse evaporar-se para sempre na claridade de uma manhã qualquer.
E foi assim que, em suas longas tardes de modesta contemplação solitaria e, ele passou a enxergar naquelas acrobacias de Ramiro — que Selene assistia com interesse quase infantil — não meros gestos de imprudência jovial, mas a performance exibida por um rival folgazão, disposto a conquistar os olhares que jamais notaram sua presença.
E esse ciúme silencioso, tão imperceptível quanto persistente, começou a germinar lá no íntimo, conferindo ao rapaz a amarga certeza de que o destino, caprichoso como sempre fora, preparava mais uma daquelas ironias cruéis das quais só as almas verdadeiramente apaixonadas se recordam pelo resto da vida.
O show de Ramiro não acontecia todos os dias. Nem sempre saltava do ônibus. Não raro, vinha a pé até a bodega, como se desejasse, ele próprio, subtrair ao cotidiano o esplendor de sua rotina performática e reinscrever-se entre os homens comuns. Nessas ocasiões, caminhava sem pressa, arrastando os chinelos pelo asfalto quente, assobiando melodias que só ele parecia conhecer.
Entrava pela porta estreita do estabelecimento e, antes de qualquer cumprimento, inclinava o corpo sobre o balcão para inalar o perfume antigo dos vinhos ali guardados — uma reverência silenciosa àquele templo modesto onde a vida ganhava gosto de eternidade.
Quando Selene estava ali, entregue à tarefa quase litúrgica de ajudar a mãe com encomendas e balas de coco, a postura de Ramiro sofria metamorfoses curiosas. Tornava-se mais ereto, o queixo ligeiramente elevado, como se a presença delicada da moça convocasse nele um senso instantâneo de dignidade heroica. Ele falava alto, descrevendo aventuras improváveis, e exagerava o balanço dos braços, esperando — quem sabe — que algum fragmento de coragem ou ousadia se instalasse no coração da jovem.
Porém, na maior parte do tempo, tudo o que conseguia era provocar nela um sorriso breve, ambíguo, daqueles que deixam o pretendente suspenso entre a esperança e o ridículo.
Selene — indiferente à disputa silenciosa que se travava a seus pés — continuava a trazer encomendas de balas com a serenidade enigmática das deusas que nunca se dão conta do poder que exercem sobre os mortais.
Foi só depois de uns quatro dias que eu, Goulart e Silvino, percebemos o sumiço de Endimião. Àquela altura, já não se podia dizer que se tratava apenas de uma ausência casual; o rapaz parecia ter se dissolvido do bairro, como uma sombra recolhida antes do amanhecer.
Goulart, sempre cético a qualquer sentimentalismo, resmungou que o garoto devia estar metido em alguma “aventura besta”. Já Silvino, que gostava de atribuir aos acontecimentos miúdos uma grandeza trágica, apertou os olhos e murmurou que certas almas, quando inflamadas por paixões silenciosas, podiam muito bem tomar rumos inesperados — e quase sempre perigosos.
Pois, foi num final de tarde, quando, por sinal, Ramiro se encontrava na bodega — tendo chegado a pé — que ocorreu o mais improvável dos prodígios: ao passar a marinete diante do estabelecimento, ainda em boa velocidade, uma figura conhecida lançou-se de costas pela porta da frente.
O corpo bateu no chão com estrépito brutal, rolando por alguns metros até deter-se quase aos pés de Selene que, desgraçada ou afortunadamente, estava por ali.
E só então, ao erguer o rosto coberto de poeira e atrevimento, reconhecemos, atônitos, o desaparecido Endimião — que jamais fora visto fazer sequer piruetas com os pensamentos, quanto mais com o próprio corpo.
Seguiu-se um silêncio opaco, daqueles que se instalam não apenas no ar, mas dentro das pessoas. Ramiro, no auge do gole prestes a ser sorvido, ficou com o copo suspenso como estátua de si mesmo. Selene, cuja presença parecia sempre tão discreta, recuou um passo, a mão espalmada no peito, como se um susto antigo despertasse enfim.
Adeodato, coçando o queixo perplexo, inclinou-se para espiar melhor, procurando garantir que o rapaz sobrevivente respirava. E Endimião — fazendo força para fingir normalidade enquanto cada osso protestava — tentou compor um meio sorriso de vencedor improvável, antes de proclamar, num fio de voz que queria ser fanfarra: “Certas coisas… a gente só aprende voando para trás”.
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