sábado, 06/12/2025
busca pelo conhecimento
A busca pelo conhecimento, pintura no estilo Vicent Van Gogh

O paradoxo do oásis aberto

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Por Tácio Brito (*)

No grande e idealizado mercado de ideias que imaginamos ser a praça pública da civilização, erguemos um santuário para a nossa mais celebrada virtude: a tolerância. E, como seu guardião e arauto, entronizamos um princípio que acreditamos ser absoluto e inegociável: a liberdade de expressão. Defendemos este oásis com uma fé quase religiosa, convencidos de que suas portas devem permanecer abertas a todos, sem exceção, para que qualquer viajante, não importa quão estranhas ou até mesmo ofensivas sejam suas crenças, possa entrar e saciar sua sede no poço do diálogo.

Essa é uma visão bela, uma utopia de racionalidade nascida do otimismo do Iluminismo. Sua mais eloquente defesa talvez se encontre em Sobre a Liberdade”, de John Stuart Mill. Para Mill, a praça pública é um campo de batalha onde as ideias colidem, e a verdade, por sua própria resiliência, emerge vitoriosa. Mesmo as opiniões falsas, ele argumentava, têm seu valor: elas forçam a verdade a se defender, a se aprimorar, a não se petrificar em dogma. Neste modelo, a censura de qualquer ideia, por mais perniciosa que pareça, é um ato de arrogância, uma presunção de infalibilidade que empobrece a todos. O oásis de Mill é robusto, autolimpante, um ecossistema onde a luz da razão, com o tempo, desinfeta as sombras da falsidade. O problema, como a história do século XX e a cacofonia digital do século XXI nos ensinaram de forma brutal, é que esta visão é um mapa para um território que não existe mais, se é que um dia existiu.

A realidade é que o oásis aberto, em sua tolerância ilimitada, contém a semente de seu próprio aniquilamento. Esta é a advertência cortante do filósofo Karl Popper, um homem que testemunhou em primeira mão a ascensão do totalitarismo na Europa. Em uma nota de rodapé quase esquecida de “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos”, Popper formulou o que hoje conhecemos como o Paradoxo da Tolerância: uma sociedade que tolera o intolerante acabará por ser destruída por ele. A lógica é, em minha visão, implacável. O intolerante não chega ao oásis para debater; ele chega para envenenar o poço. Ele não joga segundo as regras do diálogo; ele as explora como uma arma para destruí-las. Ele reivindica a proteção da liberdade de expressão não para participar da busca pela verdade, mas para espalhar a mentira que, uma vez triunfante sobre as demais ideias, silenciará todas as outras vozes. Tolerar aquele que prega a abolição da tolerância não é um ato de virtude; é um ato de suicídio.

A Verdade
Obra A Verdade, de 1899, do artista J.C. Leyendecker

A contemporaneidade nos tem trazido a encarnação deste paradoxo. Assistimos, perplexos, à ascensão de discursos que, sob o manto sagrado da “liberdade de expressão”, corroem os próprios alicerces da realidade compartilhada. O mercado de ideias de Mill pressupunha um terreno comum, um acordo tácito sobre fatos básicos e regras de argumentação. Mas o que fazer quando uma das partes se recusa a jogar racionalmente, insistindo que a terra é plana, que as vacinas são um complô e que a realidade é o que quer que sua ideologia dite em uma euforia dogmática? Aqui, entramos no território de Jean Baudrillard e seus conceitos de simulacro e hiper-realidade. O debate já não ocorre no oásis; ele ocorre em oásis paralelos, em bolhas de realidade onde os fatos foram substituídos por simulações, e a verdade, pela sua cópia hiper-real que é mais atraente e emocionalmente satisfatória. A mentira deliberada, a teoria da conspiração, o discurso de ódio e a desinformação científica não são mais vozes marginais em um debate saudável; tornaram-se correntes poderosas, amplificadas por algoritmos que lucram com a indignação e a polarização.

E é neste ponto que a hipocrisia se revela em sua forma mais grotesca. Aqueles que mais ruidosamente bradam por uma “liberdade de expressão absoluta”, que se apresentam como santos mártires da “Primeira Emenda” (por mais estranho que isso pareça), são, quase sempre, os primeiros a revelar que sua defesa é, na verdade, radicalmente condicional. Sua liberdade é seletiva. É uma rua de mão única.

Eles defendem com fúria o seu direito de atacar, insultar, desumanizar e espalhar falsidades. Mas uma fúria justiceira, igualmente intensa, se levanta contra a liberdade de outros os criticarem, responsabilizarem ou, o pior de todos os pecados, de os ignorarem. A liberdade de expressão que defendem é uma liberdade infantil, que exige todos os direitos e nenhuma responsabilidade. É o direito de gritar “fogo!” em um teatro lotado, mas se a gerência do teatro os expulsa para proteger o público, eles acusam o teatro de tirania e censura. É o direito de espalhar veneno no banquete, mas se os outros convidados se recusam a sentar à sua mesa, eles se declaram vítimas de uma “cultura do cancelamento”.

Esta postura é uma performance de vitimização. O pretenso “lobo solitário” da opinião impopular revela-se um mestre na arte de se apresentar como um cordeiro sacrificial. Ao enquadrar qualquer consequência por seu discurso — seja uma crítica, a perda de um patrocinador ou a suspensão de uma conta em rede social — como um ato de “censura”, eles executam uma manobra retórica brilhante: desviam a atenção de sua própria agressão e se reposicionam como vítimas, confiscando o capital moral da discussão.

Imagem Monstro no Espelho
Pintura Monstro no Espelho, de Gary Wray, em 2009

Enquanto se pintam como mártires da liberdade, eles próprios praticam a mais brutal das censuras. Não a censura estatal, mas a censura pelo assédio, pela intimidação, pela ameaça. Eles não buscam refutar o argumento do oponente; buscam silenciar o oponente através de campanhas de difamação, de doxxing, de ameaças veladas ou explícitas. A liberdade que eles buscam não é a liberdade de participar do diálogo, mas a liberdade de dominar a conversa, a liberdade de não ter consequências. O objetivo não é o debate, mas a intimidação. Não é a verdade, mas a retórica rasa da confusão. É a tática de inundar a praça pública com tanto ruído e tanta falsidade que o cidadão comum, exausto e desorientado, desiste de procurar a verdade e se recolhe ao cinismo ou à tribo que lhe oferecer a narrativa mais simples e emocionalmente satisfatória.

O que fazer, então? Estamos condenados a escolher entre um oásis que se autodestrói por sua ingenuidade e uma fortaleza murada que, para se proteger, se torna tão dogmática quanto aquilo que combate?

Talvez o caminho não esteja nos extremos. Talvez a verdadeira tolerância não seja a aceitação passiva de todas as ideias, mas o compromisso ativo com a saúde do próprio oásis. E isso nos leva a uma visão mais próxima da de John Rawls e sua ideia de uma sociedade justa. Para Rawls, uma sociedade liberal deve tolerar diferentes concepções do bem, mas não pode tolerar aquilo que ameaça a “estrutura básica” da própria justiça e da cooperação social.

Lenda nórdica
Lenda nórdica da amarração do lobo gigante Fenrir

Proteger o oásis não é um ato de intolerância; é um ato de autopreservação. É a compreensão madura de que a liberdade de expressão não é um direito absoluto de gritar no vácuo, mas um contrato social. E o primeiro artigo deste contrato, implícito e inegociável, é o compromisso de não incendiar a biblioteca que nos abriga a todos. A linha a ser traçada não é entre ideias “boas” e “ruins”, mas entre o discurso que, mesmo errado, participa do jogo do diálogo, e o discurso que busca destruir o próprio tabuleiro de jogo. A linha é traçada contra a desinformação deliberada que visa erodir a confiança, contra o discurso de ódio que nega a humanidade do outro, e contra a apologia à violência que ameaça a segurança do próprio oásis. É a distinção entre o herege, que nos força a pensar, e o vândalo, que apenas quer ver o mundo queimar. Tolerar o herege é um dever. Tolerar o vândalo é uma traição.

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Sobre Tacio Brito

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Tácio Brito é empresário, consultor de cultura e inteligência artificial, polímata, mestre maçom da ARLS Universitária Sergipe D'El Rey Nº 4703

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