Por Tácio Brito (*)
Na vasta e multifacetada tapeçaria da Maçonaria, existem fios de ouro que traçam linhagens de racionalismo, ética e filantropia. São os fios que tecem a narrativa que muitos de nós conhecemos e praticamos. E existem outros, mais sombrios e iridescentes, que nos conduzem a um labirinto de alquimia, teurgia e mistérios arcanos. Poucos desses fios brilham com uma luz tão estranha e fascinante quanto o do Rito Melissino, um sistema maçônico que floresceu e morreu na Rússia do século XVIII, deixando para trás um legado que desafia muitas de nossas concepções modernas sobre a Ordem.

Para um maçom contemporâneo, habituado a uma prática que, em grande parte, sublimou suas origens operativas em um sistema de moralidade velado em alegorias, mergulhar no Rito Melissino é como descobrir um capítulo perdido e curioso na história de nossa família. É uma jornada à “Era de Ouro da Rússia”, o reinado da Imperatriz Catarina II, um tempo de tensões e paradoxos extraordinários. A corte russa, por um lado, importava avidamente o Racionalismo Iluminista da França, mantendo correspondência com Voltaire e Diderot. Por outro, cultivava um profundo interesse pelo Misticismo Teosófico, influenciado pelo pietismo alemão e pelo rosacrucianismo. Como aponta o historiador Robert Collis em The Petrine Instauration, “a elite russa daquela época não via a ciência e o esoterismo como forças opostas. A busca pelo conhecimento empírico e a busca pela iluminação divina eram percebidas como caminhos complementares para a verdadeira sabedoria”. Foi neste solo culturalmente fértil, nesta confluência de razão e mistério, que um homem ousou propor uma “terceira via” para a Maçonaria.
O Vazio Espiritual e a “Terceira Via” de Melissino
Na década de 1770, a Maçonaria russa era um campo de batalha ideológico. De um lado, o Sistema Sueco, de caráter aristocrático e fortemente cristão, enfatizava a lealdade política e a caridade. Do outro, a Estrita Observância Templária, um sistema alemão liderado pelo Barão von Hund, eletrizava a nobreza europeia com sua reivindicação de ser a herdeira direta dos Cavaleiros Templários históricos. Seu foco, contudo, tendia a ser administrativo e hierárquico, com uma forte ênfase na restauração de títulos e privilégios de cavalaria.
Em meio a esses sistemas, um general de artilhara do Império Russo, Pyotr Ivanovich Melissino, percebeu uma lacuna, um vazio espiritual. Ele via uma Maçonaria que oferecia ou uma moralidade piedosa ou uma glória genealógica, mas que parecia ter esquecido algo de sua alma antiga. Enquanto a Estrita Observância sonhava com uma restauração militar e política da Ordem do Templo, Melissino propôs algo muito mais radical: uma restauração sacerdotal e mágica.
Sua Loja do Silêncio (Молчаливости), fundada em São Petersburgo por volta de 1765, não era um dos muitos clubes sociais onde a elite de Catarina se reunia para discutir política e filosofia. Era um verdadeiro laboratório esotérico. Como detalha o historiador David Harrison em sua obra seminal, The Lost Rites and Rituals of Freemasonry, “o Rito Melissino se tornou uma ponte crucial e evolutiva. Ele resgatou e preservou elementos da alquimia operativa, prática, que estavam sendo cada vez mais descartados como superstição na Europa Ocidental, e, com isso, preparou o terreno teológico e ritualístico para o surgimento dos místicos “Ritos Egípcios” de figuras como Cagliostro, que viriam a dominar o cenário ocultista no final do século”.
O Fundador: Um Perfil do “Mago-General”
Para compreender a audácia e a credibilidade do rito, é imprescindível dissecar a figura de seu criador. Pyotr Melissino não era um aventureiro místico sem raízes, como Cagliostro ou Saint-Germain, cujas origens eram nebulosas e cujas reivindicações eram frequentemente vistas com desconfiança. Melissino era um pilar do Estado Russo.
Nascido na ilha grega de Cefalônia, então sob domínio veneziano, ele era filho de um médico que servira na corte imperial russa. Essa linhagem, por si só, já era significativa: ele personificava uma conexão viva com a “sabedoria antiga” da Grécia e do Oriente, um conceito de imenso valor nos círculos esotéricos. Chegou à Rússia jovem e recebeu uma educação de elite, tornando-se um verdadeiro poliglota, fluente em russo, francês, alemão, italiano e grego, com conhecimentos de latim, turco e inglês. Essa capacidade linguística notável lhe deu acesso direto a textos alquímicos e rituais de toda a Europa, sem depender de traduções, muitas vezes defeituosas ou incompletas.
Sua carreira militar foi igualmente estelar. Ascendeu ao posto de General de Artilharia, destacando-se em conflitos como a Guerra dos Sete Anos e as Guerras Russo-Turcas, sendo condecorado com as mais altas honrarias imperiais. Em 1783, foi nomeado Diretor do prestigioso Corpo de Cadetes de Artilharia e Engenharia, onde implementou reformas educacionais radicais, como a abolição de castigos corporais e a introdução de teatro e história natural. Historiadores sugerem que ele usou essa posição para cultivar uma nova geração de oficiais com uma mentalidade “iluminada”, uma espécie de “Maçonaria de Estufa” que prepararia futuros membros para suas lojas.
A Arquitetura do Rito
O Rito Melissino foi estruturado como uma pirâmide de sete graus, uma jornada progressiva que, enquanto a base seguia o padrão europeu, o topo constituía uma inovação radical.
1. A Maçonaria Simbólica (Graus 1–3): Os graus de Aprendiz, Companheiro e Mestre seguiam a estrutura tradicional. No entanto, Melissino inseriu catecismos específicos que continham “pistas” herméticas e serviam como um filtro.
2. O Capítulo Invisível (Graus 4–7): É aqui que reside a originalidade do sistema, descrito por Harrison como uma “fusão de cavalaria templária e misticismo clerical”:
4º Grau: O Cofre Escuro. A jornada se aprofundava em um simbolismo sombrio e introspectivo. O templo simulava uma tumba ou catacumba. O iniciado não apenas lamentava a morte do Mestre Hiram, mas era guiado a vivenciar sua própria “morte mística”, um conceito retirado diretamente da alquimia, a Nigredo (a fase de putrefação ou escurecimento), onde o ego deve morrer para que o espírito renasça.
5º Grau: Mestre Escocês. O termo “Escocês”, frequentemente usado na época para denotar prestígio, foi reapropriado por Melissino para introduzir a historiografia templária. Os cavaleiros eram apresentados não como meros guerreiros, mas como guardiões de um conhecimento antigo, descoberto nas ruínas do Templo de Salomão. O maçom era transformado de um “construtor” em um “guardião” da sabedoria perdida.
6º Grau: O Filósofo. Um grau puramente intelectual e teórico, focado no estudo de hieróglifos, símbolos cabalísticos e a natureza da alma humana. Segundo os rituais, o objetivo era “restaurar o homem ao seu estado primitivo de inocência”, o estado Adâmico antes da Queda. O “Filósofo” deveria compreender intelectualmente as leis do universo antes de tentar manipulá-las no grau seguinte.
7º Grau: O Cavaleiro Espiritual. Com o título latino de Magnus Sacerdos Templariorum (Grande Sacerdote dos Templários), este era o ápice do sistema. Aqui, o segredo final era revelado: a verdadeira vocação dos Templários não era política ou militar, mas a de um Sacerdócio Mágico. O Cavaleiro perfeito não era aquele que empunhava a espada, mas aquele que sabia orar e operar a natureza. O grau envolvia instruções sobre teurgia (magia divina) e alquimia prática, consagrando o iniciado como um “Sacerdote-Rei”, apto a realizar a obra de regeneração da matéria e do espírito.
A Doutrina da Alquimia Operativa e Teurgia
O que tornava o Rito Melissino verdadeiramente singular era sua insistência na prática efetiva das ciências ocultas. A alquimia, no rito, tinha dois objetivos inseparáveis: a Pedra Física, para a transmutação de metais e a criação do “Elixir da Vida”, e a Pedra Espiritual, um estado de consciência purificado, a busca pela “Matéria Prima” dentro do próprio homem.
Um detalhe fascinante, resgatado por Harrison, é o uso peculiar da Acácia. No rito, havia referências à extração de “sais” da planta e ao seu uso em fumigações para induzir estados alterados de consciência, uma prática de Espagiria (alquimia vegetal) que antecipa a “Quarentena” mística que Cagliostro proporia anos mais tarde.
Alinhando-se com as teorias dos “Clérigos da Estrita Observância”, Melissino ensinava que os verdadeiros segredos dos Templários eram conhecimentos mágicos e gnósticos. Portanto, o iniciado no Rito Melissino não se tornava um soldado, mas um Teurgo: um sacerdote capaz de invocar a presença divina. Esta fusão de cristianismo ortodoxo, gnosticismo e magia cerimonial criou uma atmosfera de “Igreja Interior” que atraiu profundamente a intelectualidade russa.
Legado de Melissino
O Rito Melissino foi uma estrela cadente. O Congresso de Wilhelmsbad em 1782, que buscou moralizar e padronizar a maçonaria europeia, decidiu pelo abandono das lendas templárias, isolando o sistema de Melissino. Anos depois, o medo da Revolução Francesa levou Catarina, a Grande, a suprimir todas as sociedades secretas. Sendo um general leal, Melissino obedeceu e encerrou suas lojas. Parte de seus arquivos foi perdida ou destruída para evitar perseguições, o que explica a escassez de rituais completos hoje.
Embora formalmente dissolvido, sua “alma” sobreviveu. Seus membros mais dedicados migraram para os influentes círculos Rosacruzes de Moscou, e suas ideias sobre a união entre sacerdócio e cavalaria impregnaram o misticismo russo por gerações. O Rito Melissino permanece como o testemunho de uma maçonaria que, em um momento fugaz da história, ousou prometer não apenas a fraternidade, mas a imortalidade. Para nós, hoje, é um lembrete da incrível diversidade de respostas que a humanidade já deu à busca por luz, seja ela encontrada na razão, na moralidade ou, como ousou o Mago-General, na própria magia.
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Fontes Principais:
Collis, Robert. The Petrine Instauration: Religion, Esotericism and Science at the Court of Peter the Great. Brill, 2011.
Harrison, David. The Lost Rites and Rituals of Freemasonry. Lewis Masonic, 2017.
Madariaga, Isabel de. Russia in the Age of Catherine the Great. Yale University Press, 1981.
McIntosh, Christopher. The Rose Cross and the Age of Reason. Brill, 1992.
Waite, A.E. A New Encyclopedia of Freemasonry. Cosimo Classics, 2007.
RussianMasonry.ru (Arquivo Histórico da Maçonaria Russa).
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