Por Léo Mittaraquis (*)
A pimenta da casa, preparada pelo próprio Adeodato, granjeara fama para além dos bairros, atravessando esquinas e conversas como um pequeno mito culinário. Diziam que seu sabor tinha o ardor exato entre o desafio e o prazer, feito para despertar lembranças e abrir o apetite para novas histórias.
Recordei deste tempero especial, hoje, durante o almoço, quando, ao comer no mercado, incluí um pouco de pimenta no prato. Decepção. Nem de longe chegava a deter aquele sabor, ou, pelo menos, aquela ardência com personalidade.
Naqueles tempos, quem almoçava ou jantava na bodega e apreciava um toque ardido no prato não pensava duas vezes: pedia logo a pimenta da casa. Nada de versões compradas em supermercado — ali, o sabor tinha personalidade própria.
Além da conhecida e famosa pimenta, havia uma outra, sobre a qual pouco se comentava e poucos tinham conhecimento da existência: uma tal de “Pingo de Fogo”. O adjetivo que se costumava usar para caracterizá-la era: “violenta”.
Diziam que Adeodato a guardava num vidro pequeno, escondido atrás das prateleiras mais altas, como quem protege um segredo perigoso. Não era oferecida a ninguém; era preciso pedir por ela com certa cerimônia, quase como quem solicita um favor arriscado. Quem ousava provar descrevia a sensação como um clarão quente que subia direto pela espinha, desses que fazem o mundo silenciar por alguns segundos. A “Pingo de Fogo” não era feita para agradar, mas para testar limites — e talvez fosse exatamente esse mistério que a tornava ainda mais lendária entre os poucos iniciados.
Entre os poucos que se colocavam nesta categoria estavam Celestino e Proença, dois habitués da bodega cuja coragem beirava a teimosia. Celestino, sempre de chapéu torto e fala mansa, dizia que a vida só ganhava graça quando ardia um pouco. Proença, por sua vez, sustentava que provar a “Pingo de Fogo” era um rito de passagem — “se não treme, não vive”, repetia, orgulhoso. Quando Adeodato tirava o pequeno vidro do alto da prateleira, os dois se entreolhavam como quem se prepara para um duelo silencioso.
Público assistente composto por seis a oito frequentadores. Incluindo Jandira, contadora do escritório Murilo & Gastão — Consultoria Financeira, e Dalva, atendente do açougue [não havia esta coisa de “casa da carne”] Pedroso — Cortes Selecionados. Elas costumavam ocupar a mesa do canto, de onde observavam cada movimento com a atenção de quem acompanha um pequeno espetáculo diário. Entre goles de vinho colonial e xícaras de café, conversas sobre boletos, clientes e cortes do dia se misturavam às bravatas de Celestino e Proença, como numa novela ao vivo. Não era raro que rissem baixinho, trocando impressões sobre o que viria a acontecer quando o vidro proibido finalmente aparecesse. Ali, na bodega, aquela plateia improvável dava ao ambiente um ar de reunião comunitária onde o ordinário ganhava tintas de aventura.
Passarinha, calabresa acebolada, tripa e farofa de ovo… O frasco, com iniciático e cáustico conteúdo, já se impunha ao centro da mesa como um totem de coragem. Bastava sua presença para que as conversas baixassem meio tom, como se todos ali, mesmo os que jamais ousariam provar, reconhecessem o poder daquele pequeno cilindro de vidro.
A rolha saturada e gordurosa parecia guardar histórias de décadas, cada mancha contando a travessia de quem tentou medir forças com a “Pingo de Fogo”. E, enquanto as porções fumegavam sob a luz amarelada da noite, a mesa inteira ganhava um clima de pequena cerimônia, como se aquele encontro informal fosse apenas o pretexto para o verdadeiro acontecimento: descobrir quem seria o próximo a desafiar o inferno engarrafado de Adeodato.
Proença, num gesto rápido, quase inesperado, lançou mão do frasco, saltou a rolha e, com o molho encapetado, traçou um semicírculo amarelado na borda do prato. Devolveu ao centro da mesa num gesto lento, um tanto cerimonioso…
Proença então repousou o cotovelo na mesa, como quem se prepara para um pacto, e aproximou o rosto do prato, avaliando a extensão do risco que acabara de assumir. O silêncio ao redor era quase palpável; até Jandira e Dalva interromperam a conversa para acompanhar o desfecho daquele traço luminoso de bravura. Com a ponta do garfo, Proença tocou a linha amarelada e levou à boca uma porção mínima, mas suficiente para que seus olhos piscassem duas vezes — não em fraqueza, mas em respeito. A reação veio contida, quase elegante: um leve pigarro, a respiração retomada com cautela, o sorriso enviesado de quem aceita a batalha. E, naquele instante, todos souberam que a “Pingo de Fogo” tinha aberto oficialmente a noite.
Assim sendo, Celestino, com o frasco já de boca pra baixo, constelou seu prato de linguiça, cebola e farofa com generosos pingos flamejantes, como quem marca território diante de uma plateia atenta. Quando ergueu os olhos, trazia aquela expressão meio desafiadora, meio zombeteira, que só aparece em noites de coragem improvisada. Passou o garfo pela mistura abrasada e, sem qualquer solenidade, levou à boca um bocado inteiro, grande demais para ser prudente. O efeito foi imediato: um rubor subiu-lhe pelas faces, depois pelas orelhas, como um incêndio que encontra madeira seca. Ainda assim, ele manteve a postura, batendo o garfo na mesa em aprovação, enquanto os demais — entre risos contidos e olhares incrédulos — reconheciam que, naquela rodada, Celestino ultrapassara o limite do razoável com a convicção de um devoto.
A voz rouca e macia de Dalva se fez ouvir: “Proença, mostra que é macho e vá de colherada!”.
Proença se voltou para a provocante. Olhou-a sério e disse: “eu já estava pra reconhecer a vitória do Celestino. Mas, diante do desafio, e partindo de tão graciosa criatura, vou ter muito gosto de aceitar…”
Celestino tomara a iniciativa de quase transbordar uma colher de sopa com a Pingo de Fogo. Depois, ficou a fitar Proença, a aguardar autorização para derramar sobre o prato. O desafiado assentiu…
Celestino então ergueu a colher acima do prato como quem segura um estandarte em plena batalha, a superfície trêmula sob o peso vermelho-alaranjado da ousadia líquida. O silêncio fez-se imediato, quebrado apenas pelo zumbido distante de um inseto atraído pela luz do balcão. Quando Proença, com um leve aceno de queixo, reafirmou o consentimento, Celestino inclinou a colher devagar, deixando que o molho escorresse em fio grosso, quente, quase vivo. O traço caiu sobre a farofa e a tripa como uma assinatura incendiária, provocando um murmúrio coletivo — metade apreensão, metade aplauso. E, naquele instante, a noite pareceu suspensa, como se todos aguardassem o estampido invisível daquele gesto temerário.
Proença, sem tirar os olhos dos olhos de Celestino, fez, com a mão direita, um amálgama de tripa, vinagrete e farofa, mistura de elementos diferentes ou heterogêneos formar um todo incendiário, e lançou para dentro da boca.
Mastigou devagar, era possível perceber que sua mandíbula tremia, suava em abundância.
Mastigou devagar; era possível perceber que sua mandíbula tremia, suava em abundância, e ainda assim mantinha o olhar firme, como quem se recusa a admitir a própria temeridade. A cada movimento das maxilas, travava-se nele uma disputa silenciosa entre o orgulho e o instinto de autopreservação. O rosto de Proença assumiu um vermelho intenso — daqueles que dispensam qualquer explicação — e uma veia pulsante surgiu em sua têmpora, marcando o ritmo da batalha interna. Mesmo sufocado pelo ardor, endireitou as costas, respirou pelo nariz — desafio quase suicida — e ergueu o garfo como quem celebra um triunfo duvidoso. Ao redor, Jandira, Dalva e o restante da plateia observavam entre a angústia e o riso, testemunhando um espetáculo tão desastroso quanto fascinante. E foi naquele instante, entre coragem e colapso, que a noite encontrou seu ponto mais alto.
Celestino se pôs de pé, perfilou diante de Proença — este ainda sentado — prestou continência e aplaudiu, secundado pelos demais. Proença tão somente esticou-se na cadeira, pernas distendidas, braços apensos ao lado do corpo. Sorria, de olhos fechados, como quem repousa no exato limite entre a vitória e o desmaio. A noite, então, suspendeu-se por um instante, tomada por um silêncio reverente quebrado apenas pelo rumor leve das risadas que vinham depois do susto. E ali, naquele pequeno templo de petiscos, bravatas e exageros, consagrou-se a epifania ardida de um homem que, tendo encarado a “Pingo de Fogo”, parecia finalmente em paz com o próprio destino.
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