sexta-feira, 05/12/2025
Jogo de dama
A disputa no jogo de dama Concepção original por Léo Mittaraquis. Finalização, Canva IA

Uma Linda em jogo

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Por Léo Mittaraquis (*)

 

“Ele oferecera um gole de aguardente ao visitante — presente mais caro do que um diamante, pois saíra de sua própria reserva”

                                                                                                                                                          Honoré de Balzac

 

Nestes últimos três dias, o clima fresco tem marcado presença ao final das tardes. E, após o anoitecer, até um friozinho mais acentuado tem chamado à atenção.

O que me levou a recordar, aos poucos, dum entardecer meio abafado, próprio do verão que se aproximava, na época, ainda meio indeciso, e daquele subúrbio, hoje um tanto esquecido, mas que já fora ponto de referência boêmia da cidade.

E não se pensava em boemia sem levar em consideração a bodega de Adeodato: as duas janelas, das quais o bodegueiro sempre espanava a poeira; o balcão lustroso, as cadeiras de madeira rangentes… Sim, recordo… Tudo ali tivera o “cheiro de sempre”, no dizer do Djalma, mestre torneiro, especialista em fresa industrial. Ele sabia, por ali, mais que qualquer um, calibrar cabeçote, fuso e motor.

Vou contar o que se passou sem muito estilo. Estou devagar, hoje, então, escreverei como vir à mente, sem preocupação em burilar.

E naquele fim de tarde… Baixou o lusco-fusco, e com ele vieram duas figuras bem conhecidas: Gastão e Rivaldo. Se não incorro em engano, devido a brumosa memória, foi Gastão que, de maneira direta, questionou Adeodato sobre garrafa única e lacrada de Linda, cachaça produzida pela Casa Di Conti. Considerada troféu entre os habitués da bodega. Todos sabiam que tava lá, bem guardada.

Rivaldo, de barba por fazer, diante do silêncio de Adeodato, se manifestou como a dar uma satisfação: “A gente vai disputar essa garrafa. Joguinho de dama. Quem ganhar leva. Depois você bota preço”.

Disputa assim, era mais que aguardada por ali. Adeodato sorriu e, ainda calado, se abaixou por trás do balcão. Emergiu, logo depois, com velho tabuleiro. Só então falou em tom grave: “Então, que seja na dama”.

A bodega foi tomada pelo quase-silêncio, exceto pelo tilintar casual de copos e garrafas. O tabuleiro foi colocado sobre uma das mesas, com as peças arrumadas. Adeodato serviu um copo d’água para cada um. Gesto simbólico, um aviso: nada de álcool até o fim do jogo.

Olhos e mais olhos voltados para o campo de sessenta e quatro casas. Cada um dos contendores a controlar doze pedras. A ansiedade de promover peças a damas.

O jogo prosseguiu com movimentos de avanço clássico, pedras se movendo uma casa para frente nas diagonais, e capturas obrigatórias.

Finalmente, após uma disputa longa, Rivaldo realizou uma manobra esperta: saltara com uma peça, fez a sequência, ficou com vantagem. Quatro pedras capturadas. Mais uns lances, venceu o jogo.

Gastão deitou, sobre o tabuleiro, resignado, batera a mão na mesa: “Tá bom, você ganhou”. Adeodato se aproximara e dissera: “Parabéns ao vencedor. Rivaldo, a garrafa é sua.”

Rivaldo levantou-se com um sorriso contido, pegou a garrafa da mão de Adeodato: objeto sobre o qual, neste futuro em que escrevo, se tornara símbolo de uma época. A marca Linda, anos 50… Ele ergueu a garrafa para que todos vissem. “Essa aqui vai pra casa comigo. Adeodato, a gente acerta preço na semana que vem”. E saiu da bodega, como um campeão, com a garrafa debaixo do braço.

Então, sem aviso, coisa de uns quarenta minutos depois, Rivaldo voltara. Entrou devagar, agora de chapéu, com a Linda nas mãos. Aproximou-se de Gastão, que, desde o fim do jogo, saiu da cadeira e s’encostou balcão. Mas, ainda a olhar para as pedras de damas em desordem, ainda no tabuleiro.

Rivaldo sorriu e disse: “Olha, Gastão… sabe o q’eu tava pensando? Essa garrafa não é de se beber sozinho. E você jogou bem, também. Ganhei por sorte. Vamos dividir”.

Gastão ergueu as sobrancelhas, surpreso. “Vai puxar metade da garrafa?” perguntou. “Isso mesmo”, respondeu Rivaldo, “vamos abrir agora. Você e eu, meio a meio.” E assim fizeram.

 

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Sobre Leo Mittaraquis

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Léo Mittaraquis é graduado em Filosofia, crítico literário, mestre em Educação. Bodegário da empresa Adega 7 Instagram: @adega7winebar

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