Por Léo Mittaraquis (*)
Recordo, num repente, meio à sesta, após a dobradinha com pimenta no Gama, de Trajuá. Era garrafeiro. A memória se remexe, dá voltas e, por um sopro de passado, fica suspensa no ar como poeira fina na manhã, partículas a cintilar.
Às cinco da tarde, quase que pontualmente, Trajuá atracava a carrocinha de duas rodas [“e de dois andares”, como também costumava ele se referir ao veículo], embicada para baixo, rente ao meio-fio, defronte à bodega.
Ao todo — puxando pela lembrança já meio puída, como tecido gasto de tanto manuseio — a carrocinha devia levar uns sessenta cascos, mais ou menos… Tudo variava, claro, conforme o corpo de cada um deles.
Mais um dia correra, este que começara às seis e meia da manhã. Rua a rua, casa a casa, pelo bairro…
O sol preparava para mais uma viagem pelo Duat, pelo mundo subterrâneo. Assim sendo, tingia a tudo de rubro dourado, como se fosse um longo manto que arrastava enquanto se ia.
Trajuá, naquele fim de tarde, estacara na calçada, tomado por agudo sentimento de melancolia, a observar o efeito luminoso. As garrafas, cuidadosamente arrumadas em pé,na carrocinha, refratavam os raios do astro, em tons faiscantes de verdes, azuis, castanhos…
Trajuá suspirou fundo, apoiando as mãos calejadas num tonel que fora posto na calçada, porém rente à parede, como quem procura firmar-se não só no metal, mas também no próprio mundo que por vezes, tinha eu a impressão, lhe parecia escapar.
Era comum ouví-lo comentar que sua lida era simples, repetitiva, Talvez, sabe-se lá, naquela hora tardia ele sentisse que cada garrafa, cada reflexo de cor, continha uma pequena história. Havia nelas o vinho que embriagara alegrias e afogara tristezas, o óleo barato que nutrira mesas humildes, o cheiro do álcool que acompanhara tanto o riso quanto a solidão. Suas garrafas traziam coisas que não pertenciam a ele.
Mas parte desta percepção, na verdade, desta especulação, é de minha desautorizada autoria, levada pelo excessivo romantismo literário. O que quer que se passasse na cabeça dele, o sabíamos, eu e os demais frequentadores da bodega, pelo que dizia, coisa que fazia de maneira filtrada, peneirada, sem entregar tudo.
Mas, se assim o é, como, cargas d’água, pude eu, nas linhas mais acima, descrever o estado de espírito de Trajuá? Intuição, empatia… Ver nos olhos dele?
Como pude então perceber o que se passava na mente daquele homem apenas observando o seu olhar? Talvez fosse a penumbra da tarde, que emprestava às coisas um silêncio grave, ou quem sabe a fadiga dos anos…
Hum… Sim, chegara eu bem antes dele. Minha primeira parte do dia, como de costume e por necessidade, se dera em sala de aula. Professor de História, do primeiro ao terceiro ano científicos no colégio Roselita Souza Marinelli. Das sete a uma.
Salvo engano, me fiz presente na bodega perto das quatro. Quase que pareado, Alvair apareceu também, ansioso por exibir sua nova aquisição: um Opala 1972. Portanto, com apenas quatro anos de uso. Coisa de troca: pelo carro, dera seu terreninho à beira da Br, o motor de tirar água de poço e a Yamaha CS5 195cc, importada.

Estávamos a debater se fora um bom negócio ou não. Freitas, escrivão, adepto fiel do conhaque de alcatrão com mel e limão, com uma quedinha não de todo admitida pela genebra, num tom filosófico dizia que não fora ruim e nem bom. Alvair tentava encerrar o simpósio aumentando o tom de sua voz metálica: “Tá feito e pronto!”.
Não hesitei em admitir, na ocasião, que Alvair tinha nas mãos um bem pouco usado, e que era considerado, desde seu lançamento, um clássico. Contudo, minha atenção, agora mais acurada, gravitou em torno do Trajuá — esguio, alto, girando em torno de si mesmo, fazendo dos objetos e pessoas por ali, próximos, seus satélites.
Por fim, dando as costas ao astro morrente, entrou, buscou seu lugar de sempre: banco alto, no canto, rente ao balcão. Também pediu o de sempre, pinga de alambique com um toque pessoal do bodegueiro: ervas maceradas e melaço. Para acompanhar, uma porção de passarinha.
O silêncio dominou quase que absoluto, entre mesas, barricas, vassouras de vasculhar, sacos de cebola e batatas. Neste ínterim, Túlio da Sapataria, meio que de maneira abrupta, apareceu, tropeçou no batente, catou a primeira cadeira, apoiou-se no espaldar e, num giro preciso, sentou-se. Assoviou, correu os olhos por tudo e por todos, riu meio amarelo, e com o inconfundível gesto pediu uma dose de Velho Barreiro. Virou de uma só.
Foi quando, com o rosto afogueado, contrastando com o branco do pescoço, pareceu perceber, de fato, a presença de Trajuá. Mais que perceber, na verdade, fora tomado, inconfundívelmente, por grande surpresa. Estava, diria eu, mais que surpreso, estava assustado, algo de quase terror, se desenhava em seus olhos.
Túlio permaneceu imóvel por alguns instantes, os dedos ainda aferrados ao copo vazio, como se o vidro pudesse segurá-lo do mesmo modo que o chão. O garrafeiro rompeu o silêncio dizendo que, pela manhã, ele mesmo houvera batido palmas na frente da casa de Túlio, aguardando a entrega de dois engradados de cascos vazios do guaraná Mirinda, prometidos e já vendidos a comprador certo. Fiado na palavra de Túlio, recebera pagamento adiantado pelos cascos.
Mas Túlio não atendera, e a promessa de devolução no início do dia ficara esquecida, como se a manhã tivesse dissolvido sua palavra. Mais grave ainda, Túlio pedira à esposa que dissesse que estava com intestino solto e que passaria dia e noite da cama pro banheiro e do banheiro pra cama.
Soube eu, depois de todo o ocorrido que estou a relatar agora, que a esposa de Túlio, Dona Romana, alertara ao marido sobre a possibilidade dele vendê-los, ao invés de apenas dá-los a Trajuá. E se eu estava ciente de tal, a turma toda também já o sabia.
Embora falasse com tom de censura, de decepção, Trajuá, por sua vez, mantivera-se tranquilo, quase sereno, deixando que o silêncio subsequente congelasse o movimento normal do lugar.
O olhar fixo percorreu cada traço do visitante abrupto, lembrando-lhe das promessas não cumpridas, do descaso que a manhã registrara. No meio desse confronto mudo, algo se formou, uma tensão quase elétrica, carregada de expectativa e reprovação, como se o encontro não fosse apenas acidental, mas a justa e implacável consequência de um compromisso quebrado.
Trajuá não estava na Bodega por causa dos engradados. De início, acreditara em Túlio. Fora à Bodega somente para beber, mesmo. Mas, agora, com Túlio muito bem de saúde, bebendo Velho Barreiro, a farsa veio ao chão. O rosto de Trajuá endureceu, e a surpresa deu lugar a algo mais cortante: uma mistura de desapontamento e reprovação silenciosa. Cada gesto de Túlio, cada risada meio amarelo, parecia gritar contra a manhã esquecida e a mentira ensaiada.
Túlio, percebendo a mudança súbita no olhar do amigo, engoliu em seco. O copo quase escorregou-lhe das mãos, e o olhar dos demais sobre ele pareceu pesar mais do que antes. O silêncio ia e voltava entre murmúrios, carregado de culpa, da promessa não cumprida e do ardor do álcool recém-ingerido, criando uma tensão que ninguém, à exceção de Trajuá, ousava quebrar com palavras inúteis.
Trajuá bebeu mais uma dose, sem pressa, deixando que o líquido queimasse a garganta como se fosse preciso dissolver algo mais do que o álcool. Ergueu-se com um gesto contido, murmurou um “até a próxima” que mal se ouviu entre o ranger das cadeiras e o eco das barricas. Passou por Túlio sem sequer olhá-lo, como se os olhos do amigo fossem invisíveis ou simplesmente não merecessem atenção.
A carrocinha, plena de garrafas, rangia sob o peso, refletindo a luz trêmula da rua mal iluminada, enquanto Trajuá desaparecia entre sombras e muros silenciosos. O vento carregava um cheiro de terra úmida e de dia perdido.
Por um instante, a bodega pareceu respirar fundo, como se o próprio lugar soubesse que algo havia terminado ali, sem palavras, sem confronto, apenas com a elegância melancólica e cortante de uma partida silenciosa.
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