domingo, 24/03/2024
Praia do Calhau, Maranhão

Um amigo sábio

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Luiz Thadeu (*)

Quando meus filhos Rodrigo e Frederico eram pequenos, geralmente nos finais de semana, íamos à praia do Calhau, frequentávamos uma barraca bem calma, sem o frenesi da vizinhança. A barraca era ponto de encontro de pais com filhos miúdos. Era tempo de pocinha, balde e utensílios de plástico colorido, bola, picolé, sorvete, guaraná Jesus, cachorro quente, batatas fritas; diversão garantida das crianças.

A barraca era administrada por Dionísio, homem de poucos estudos, de imensa sabedoria. De prosa simples e cativante, era um deleite conversar com aquele homem atarracado, cútis escura, cabelo liso, que lembrava um indiano.

Bem mais velho que eu, Dionísio era certeza de bom papo, não tinha um assunto que ele não fizesse observações certeiras e hilárias.
Enquanto os meninos estavam com Heloísa nas pocinhas, o papo com Dionísio seguia seu curso, regado a cerveja gelada; eu a absorver ensinamentos. Gosto de histórias, sou ouvinte atento, fiz curso de escutatória.

Falamos muito da inflação, época do governo do presidente José Sarney, que ao deixar o Palácio da Alvorada, a carestia, nome da inflação naqueles tempos, estava na estratosfera. Para os leitores mais novos, que não viveram em tempo de descalabro da economia, em 15 de março de 1990, quando José Sarney passou a faixa e transmitiu o cargo para Fernando Collor de Mello a inflação foi de 84%. Caro leitor, amiga leitora, você não leu correto, foi de 84% ao mês. Quando o destemperado e embusteiro Collor de Mello – auto declarado “Caçador de marajá” – assumiu, confiscou o dinheiro de todos, mas isso é assunto para outra prosa.

Dionísio, homem do interior maranhense, voz calma, dizia: “Amigo Luiz, nunca deixe de tratar bem as mulheres, são elas que nos amparam na doença, na velhice. Você já viu um homem sair de casa para fazer comida para outro homem? Você já viu homem lavar a roupa ou a rede de outro homem?”, Sorria e arrematava, “claro que não, só as mulheres têm esse dom”. “Agora, para ter e manter uma mulher como companheira, tem que ter muita paciência”. Sábias palavras.

Era outra época. Hoje, meus filhos são adultos, trabalham, estão casados, constituíram família. Ainda não têm filhos.

O tempo seguiu seu curso, a barraca foi vendida, perdi o contato de meu amigo Dionísio. Na semana passada, para minha surpresa e alegria, ao estacionar o carro próximo ao mercado central vi um homem parecido com ele. Coloquei o carro na vaga do estacionamento, e ao chegar perto, era o próprio. Quanta alegria, e mesmo com as recomendações destes tempos tóxicos, quebrei o protocolo, e dei um longo abraço em meu amigo. Caminhamos mais um pouco, nos acomodamos em cadeiras de um bar, e retomamos nossas conversas do passado. Perguntei o que ele fez neste tempo todo, “vivi, meu amigo, como Deus permitiu.

Falou-me que perdeu um filho, em acidente de carro, falou-me das dores da carne e da alma. Narrou fatos sem amargura, apenas relatando histórias que se desenrolaram ao longo do tempo. Ele que fora casado quatro vezes, disse-me que estacionou na quarta companheira, que se acomodara. Perguntei pelas ex-mulheres, respondeu-me que estavam bem, na medida do possível, que continuava amigo de todas. Falou-me dos dez filhos, eram onze, contou-me do neto que foi jogar futebol em Belo Horizonte. Se lembrava de Rodrigo e Frederico, perguntou por eles.

Pedi um café para nós dois, ele bebeu como a degustar um manjar. Perguntei se queria mais outro, “não, tomo café de teimoso, o doutor me pediu para deixar de tomar café, tenho gastrite”. “Coisa ruim da velhice é deixar de comer coisas que você gosta, mas é assim mesmo.”

Falou das dores na coluna, era para ter sido operado, mas o medo fez com que adiasse a cirurgia até agora. Falamos destes tempos esquisitos que estamos vivendo, falamos do meu acidente, disse-me que tinha visto algumas entrevistas minhas na TV, nos jornais, e que dizia para seus filhos e amigos que me conhecia fazia muito tempo.

Perguntou-me pelas minhas viagens pelo mundo, disse-me que seu mundo foi somente uma parte do Maranhão. Nunca visitou nem Teresina.

“Meu amigo Luiz, você não se deixou abater pelo infortúnio, você é um homem corajoso, andou muito por esse mundão de Deus com suas muletas. Isso não é para qualquer um”.

Falou que tem tempo para tudo, “outro dia eu era homem forte, viçoso, mastigava com os dentes, hoje estou velho, mastigo com a gengiva, assim é a vida, disso ninguém foge, ou é assim, ou é pior, a morte”.

O telefone tocou, era um filho dizendo que daqui a pouco iria apanhá-lo para levá-lo para casa. Minutos depois, meu velho e sábio amigo Dionísio, levantou-se, nos abraçamos novamente, se despediu e se foi.

Sentado, a observá-lo, vi aquele velho homem a caminhar lentamente, com passos curtos, quase sem tirar os pés do chão, a carregar dentro de si uma criança, um jovem, um adulto, e agora um velho, muitas histórias e enorme sabedoria.

Quando nos veremos novamente? Só o tempo sabe.

 

Luiz Thadeu Nunes e Silva é engenheiro agrônomo, palestrante, cronista e viajante: o sul-americano mais viajado do mundo com mobilidade reduzida, visitou 143 países em todos os continentes.

** Esse texto é de responsabilidade exclusiva do autor.  Não reflete, necessariamente, a opinião do Só Sergipe.

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Sobre Luiz Thadeu Nunes

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Eng. Agrônomo, palestrante, cronista e viajante: o latino-americano mais viajado do mundo com mobilidade reduzida, visitou 151 países em todos os continentes da Terra. Membro do IHGM, Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão; ABLAC, Academia Barreirinhense de Letras, Artes e Ciências. Autor do livro “Das muletas fiz asas”. E-mail: luiz.thadeu@uol.com.br

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