quarta-feira, 19/11/2025
Adeodato na bodega
Adeodato na bodega Imagem gerada por IA

Espelho d’Alma

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Por Léo Mittaraquis (*)

 

“O espelho não mente; devolve aos nossos olhos a imagem de nossos desejos e nossas dores.”

                                          Paul Valery

 

Adeodato acabara de limpar e polir o balcão: tirara a poeira com pano seco. A madeira apresentara manchas suspeitas em alguns pontos. O bodegueiro usara, então, pano levemente umedecido com álcool puro. Depois, com outro pano limpo e seco, passara Old English em movimentos circulares e, com este método, obtivera brilho desejado.

Pendurara pano no ombro, recuou um passo e observara reflexo tênue da luz sobre tampo. Gostava daquele instante silencioso, quando o cheiro de álcool, lustra-móveis e madeira encerada parecia marcar o fim de um pequeno ofício.

Fez menção de tirar um cigarro da carteira que estava sobre o “Caixinha, Obrigado”, mas preferiu apenas respirar fundo. O balcão, agora reluzente, dava-lhe uma sensação de ordem e sossego que, até onde soubera eu, raramente encontrava fora dali.

Era coisa de antes das sete da manhã. Adeodato não se sentira disposto para levar operação descrita acima no dia anterior. A bodega fechara tarde. Pelo que lembro, por volta das duas e vinte da manhã.

Sei da aplicada atenção de Adeodato ao balcão, sei do seu estado d’espírito, porque chegara antes de todos . A costumeira e amigueira insônia houvera por bem me fazer companhia por parte da madrugada.

Ante o inexorável, optara por reler a biografia de Beethoven, publicada, há pouco tempo, na época, pela Editora Cosmos, ouvindo, ao mesmo tempo, sua tempestuosa e shakespeariana Sonata nº 17.

Pegara no sono depois das três e acordara quase às seis, ciente de que não dormiria mais.

Estou, já percebeu o atento leitor, a voltar e a adiantar a fita: tempo e evento não obedecem, aqui, necessariamente, a cronologia.

Então, banho. Embaixo do chuveiro, copo de brandy apoiado no vitrô do box. Entre uma esfregadela e outra, um trago.

Banho tomado, cabelo devidamente glostorado, cara escanhoada, duas passadas de Old Spice After Shave. Bermuda e camisa de linho, tons azuis, carteira de Philip Morris no bolso, montara na minha Raleigh, a magrela, pedalando devagar, me dirigira à bodega para tomar café…

…E lá chegara eu, como dissera antes, surpreendendo, por assim dizer, Adeodato aos carinhos com o balcão. Concedera-me uma olhadela. Finalizara tudo. Postara-se um tanto distante, como um artista após concluir pintura ou escultura, a admirar sua obra de arte.

Bem, me valho do futuro mais que perfeito no intuito de relatar fatos com a devida e romântica distância.

A lembrança se torna suave, as dores se dissolvem em palavras, as quais, à semelhança do bodegueiro e seu balcão, o tempo poliu. Assim, transformo o vivido em narrativa, o instante em eco, a saudade em estilo. O futuro mais que perfeito me concede o poder de reescrever o passado com ternura e elegância. E, ao fazê-lo, descubro que recordar é também uma forma delicada de continuar existindo.

Como se voltasse à realidade, como se acordasse de um sonho, Adeodato me cumprimentara. Voltara os olhos mais uma vez para a superfície lustrosa, até um tanto espelhada. Dera as costas, fora até a Victoria Arduino, famosa pelo design de luxo em cobre e latão com águia no topo, que adquirira por uma pechincha…

Pusera café moído no porta-filtro de metal, já encaixado no bico extrator. Acionara a alavanca, fazendo com que água quente e vapor passassem pelo pó. Barista nato, sabia do ponto certo pelo som e pela cor do café.

Fizera menção de levantar da mesa e ir ao balcão. Mas Adeodato, num gesto, praticamente ordenara que eu ficasse onde estava. Enchera xícara, cortara pão, passara generosa quantidade de Manteiga do Estado, trouxera tudo até a mim. Incluindo açucareiro.

Pão feito por ele mesmo. No forno pequeno. Quantidade para atender aos moradores próximos. Casca bem tostada… Era bom.

Ao voltar para trás do balcão, ligou o Telefunken, iluminado de dentro para fora, luzinhas no interior da caixa feita de latão, madeira e baquelite. O espaço foi inundado pela voz leve e marcante de Charles Trenet a cantar “La Mer”.

Naquele momento chegou Nunes, atendente irregular, ajudante meia-boca do qual valia-se Adeodato no início do dia, quando a clientela da “média e pão com manteiga”, passava de uma dezena.

Adeodato fixara olhos sobre recém-chegado, no entanto este, meio alheio ao entorno, se aproximara do balcão carinhosamente polido. No momento em que Nunes deu volta pela estreita passagem entre a extremidade do balcão e a parede caiada, denominada por Goulart, boticário deveras culto, de Trilha de Anopeia, Adeodato postara-se atento como um gato a andar entre cactos.

Na opinião de Goulart, por ele mesmo dita “abalizada” Adeodato vivia ao “estilo espartano”, sendo Nunes “o tragicômico contraponto”. Seja lá o que tal dito significasse.

A título de manter equilíbrio, Nunes estendera braço esquerdo com mão espalmada para se apoiar no balcão. Foi quando, numa reação felina, Adeodato tomou-lhe o pulso, sustendo o braço cada vez mais para cima.

Nunes não esboçara mínima reação. Deixara-se levar. Adeodato o direcionou para a grande pia de estanho e chumbo, ainda plena de copos, pratos, talheres da noite passada.

A esta hora, outros vezeiros se faziam presente, e parecera que somente então Adeodato tomara consciência disto. Correndo os olhos pelos semblantes espantados bradou de maneira teatral: “Que ninguém manche meu balcão, meu duplo, meu espelho d’alma!”

 

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Sobre Leo Mittaraquis

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Léo Mittaraquis é graduado em Filosofia, crítico literário, mestre em Educação. Bodegário da empresa Adega 7 Instagram: @adega7winebar

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