sexta-feira, 19/12/2025
Escritor Antonio Guedes
Escritor Antonio Guedes, durante lançamento do seu livro "Arquitetura da Perda"

Traço, Espaço, Tensão na trama pictográfica dos versos — A propósito de “Arquitetura da Perda”, de Antônio Guedes

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Por Léo Mittaraquis (*)

 

Fora dito, sobre a escritora Katherine Manisfield, levando-se em conta sua vida sofrida, não obstante rica em experiência estética e intelectual, que sua obra se apresentava como “um milagre nascido da dor”.

Eu mesmo já me vali dessa frase e do artigo, na época publicado na Revista Seleções do Reader’s Digest. Final dos anos 70, creio.

Ao ler o livro estreante do poeta Antônio Guedes — obra perpassada pela dor, numa perspectiva que pensa a falta da substância, de um ser querido, no espaço familiar, íntimo, pessoal e único — percebo o milagre.

Bem entendido: não estou a afirmar ser a obra fruto tão somente daquilo que rompe a ordem esperada das coisas, suspendendo por um instante a lógica do mundo. Não, não, nada disto.

Há labuta, há disciplina, há cuidado com a forma… O fato de ser o primeiro livro não o põe como mera obra dum neófito. Há madureza, vale dizer, há estado de plenitude no domínio da língua, do discurso, do objeto.

Há plena ciência da realidade operatória que rege a produção dum objeto de arte.

Há a certeza do ato de liberdade que fundamenta a interrelação entre autor, obra, leitor e, no meu caso, também transdutor.

Longe de alinhar-me aos temerários e levianos, apresento provas ao leitor. Arrepare no poema “A Fome da Água”. Eis um trecho:

“A própria vibração dos seixos/pura música/no fio magro que o perpassava/Como as contas de um rosário.”

Eis domínio tal da palavra, da percepção de nuances em movimento, ao mesmo tempo em que grava na lousa da memória um instante. Ainda que se repita, ainda que o córrego esteja lá (ou ali), no outro dia, o senso heracliteano está consciente de que não é a mesma água.

A composição pictórica, paralela, em que se dispõe seixos e contas é de uma rara felicidade exitosa em termos de solução poética.

A doçura fresca da lépida e festiva água, torna-se pranto, perda de raiz, frieza a firmar silêncio e distância. Água como princípio e fim: traz e leva.

Há, cumpre declarar, nos poemas finamente elaborados por Guedes, os vestígios, os gestos, os vínculos…

É assim que interpreto o poema “A Broa”.

“As coisas que o sol ama/trazem o gosto claro do milho, mas o sol mesmo, o que sangra no intimamente, é doce como goiabada — aprendi contigo.”

Só mesmo quem foi iniciado no delicioso ato de tomar café com broa, entenderá, de imediato, o rubro centro, solar, em torno do qual orbitam os satélites da sabórica expectativa… E o que a transcende.

Momento de sabor e carinho entregue, ao menino, qual revelação. E, de repente, o é, de fato. O poema tem cheiro e atmosfera de padaria, na manhã ou no entardecer. Rememora-se, ativa-se o percursor do deflagrado projétil denominado saudade.

Em mãos incapazes, o tom e a forma descritivos, relatoriais, presentes nos poemas de Guedes, resvalariam para o entulho da insossa pieguice, do saudosismo sem a incontestável vivacidade de espírito, o claro brilho espontâneo, a bem direcionada energia inventiva. Mas estas qualidades estão, sim, presentes numa obra em que o poeta estreante ensaia passos de veterano.

“Arquitetura da Perda”, impõe-se ao testemunhar o pleno êxito da proposta estética e discursiva do autor: erguer sólidas estruturas sobre o alicerce fundado na falta.

É o sentimento opressivo, a recordar, aqui, homérida carpidura, da insustentável leveza manifesta por nuvem de dor a cobrir a alma já combalida.

Perda edificada, alçando altura, assomando com densidade, física e metafísicamente, transfiguração do poeta pleno de consciência trágica.

A vida nos cobra a morte, sim, porém, o poeta, este poeta, compreende que a palavra salva, redime, revive, na memória daquele que se foi.

Afirmo, sem hesitar, que Antônio Guedes nos entrega, em “Arquitetura da Perda”, uma leitura intensa, da qual não há como sair impune.

 

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Sobre Leo Mittaraquis

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Léo Mittaraquis é graduado em Filosofia, crítico literário, mestre em Educação. Bodegário da empresa Adega 7 Instagram: @adega7winebar

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