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De Getúlio a Lula

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Luciano Correia (*)

Desde que me afastei da academia (leia-se universidade) para me dedicar a outras atividades (primeiro à Fundação Aperipê, depois à Fundação Cultural Cidade de Aracaju), decidi deixar um pouco de lado as conspiratórias teorias que explicam o jornalismo brasileiro do século XX para mergulhar diretamente na própria matéria, sem intermediários. Assim é que nos últimos anos tenho passado a limpo grande parte da obra de Joel Silveira (sergipano, considerado o maior repórter da imprensa brasileira de todos os tempos), Josué Montello, Laurentino Gomes, Sebastião Nery e outros tantos da interface com a literatura, como Jorge Amado, Marques Rebello, Gilberto Amado etc.

Por essas linhas eu tenho composto um mosaico sortido de visões ricas e privilegiadas da história do Brasil, do Império aos períodos mais contemporâneos. Foi assim que resolvi iluminar um pouco uma fase especialmente importante da vida brasileira, o governo de Getúlio Dornelles Vargas. O fiz pelas mãos de Lira Neto, possivelmente o nosso maior biógrafo em atividade, pela densidade das obras anteriores, que vão de Padre Cícero, Castelo Branco, a cantora Maysa e até o nosso sagrado samba.

Coincidência ou não, devorei os três volumes sobre a vida de Getúlio no ano passado, quando nos debatíamos para derrotar o fascismo e trazer de volta um populista nos moldes do caudilho gaúcho, mas com a mesma grandeza histórica. Por óbvio, as comparações vinham a cada capítulo das mais de 1700 páginas que compõem os três volumes, pelo fato de que são os dois maiores expoentes da política brasileira desde a implantação da República. Tivemos o charme e o arrojo de um Juscelino, alguma contribuição de um Itamar aqui ou ali, o céu e o inferno de um FHC (mais inferno, é verdade) e nada mais.

Lula, para o bem e para o mal, encarna um espírito muito parecido na visão do mundo e da política, nas virtudes e defeitos, do homem que nos governou na ditadura e na democracia. Getúlio foi o líder que trouxe a indústria, a modernização do país e os direitos trabalhistas. Saiu da vida para entrar na história no episódio do suicídio, recurso que ele cogitara algumas vezes ao longo da vida e de cada crise que enfrentou, mas o que ficou para a posteridade foi a imagem do pai dos pobres, e, também, do ditador.

Lira desfruta de tamanho reconhecimento como biógrafo, um consenso entre historiadores e críticos, porque trabalha sério, tem fôlego e escreve bem. É fascinado pelos seus objetos, como em geral acontece. Os livros não são compêndios sobre a história do Brasil, mas uma mirada minuciosa e farta de documentos em um dos períodos mais profícuos de nossa história. Assim, é natural que o Getúlio descrito sai do texto quase como um herói injustiçado. E talvez tenha sido tudo isso mesmo: herói, injustiçado e ditador, um homem irreversivelmente apegado ao poder, capaz de exercê-lo com maestria, equilibrando amor e crueldade na proporção da necessidade de se manter no comando.

Ao concluir os três volumes, fui ver a opinião dos críticos qualificados, da imprensa tradicional aos programas no You Tube. Historiadores mais robustos são isonômicos em apontar o grande líder na mesma medida do homem tacanho, corajoso para uns e conivente com outros, incluindo parentes metidos em coisas erradas. Ou seja, se os autores não adentram a alma do homem Getúlio Vargas, como fez Lira, são meticulosos em esquadrinhar com ciência e método o papel deste político até hoje tido como o grande defensor do povo. Mergulhar na experiência da era Getúlio no mesmo momento em que vivíamos a agonia da última eleição me levou às necessárias comparações, portanto, que reforçaram as certezas fundamentais para a luta dos democratas, mesmo os que, como eu, ignoram diferenças profundas com o PT para enxergar em Lula o único líder no contexto de uma retomada das conquistas dos trabalhadores, de uma melhor distribuição de renda e justiça social. Mesmo cientes dos arroubos e desvios éticos e morais que motivaram o desgaste do projeto das esquerdas e, em consequência, a abertura do caminho para a consolidação do fascismo bolsonarista.

As contradições e até mesmo violência – principalmente no caso da ditadura do Estado Novo – são modos de ser e de agir na política que denunciam nosso estágio primitivo para consolidar uma democracia moderna e consistente, depois dos períodos de colônia e das décadas republicanas muito mal conduzidas. O resultado é o que insiste até hoje: jamais fomos capazes de construir uma democracia de fato. Temos, a muito custo, arremedos de períodos mais transigentes, mas sempre com pouca transparência, manutenção de privilégios e a total exclusão dos contingentes de pretos e pobres. E ainda assim, com reveses como o que vimos atravessando desde o golpe perpetrado pelo Congresso contra o governo Dilma Roussef, do lodaçal humano de um Michel Temer à inacreditável aberração de um Bolsonaro.

Mas o que salta evidente nos dois casos – nos dois momentos da história brasileira, de Getúlio e Lula – é a ação deletéria do que há de mais tacanho no conjunto da humanidade, a reunião das gentes da pior espécie, do lúmpen ignaro das ruas aos engravatados que constituem hoje a elite econômica do país, alojados nos melhores postos da burocracia. Os verdadeiros donos do estado brasileiro, ali chegados pelo faz-de-conta de uma meritocracia fajuta, ou nem isso, fruto da corrupção que segue sendo o motor espiritual da nação canarinha, indistintamente, de A a Z, das igrejas aos palácios, dos tribunais às universidades, em todas as faixas da população, dos anciãos às mocinhas de 15 anos.

No caso de Getúlio, depois de voltar pelo voto ao comando do país, sofreu uma conspiração sórdida jamais vista num país especialista em quarteladas e traições, com o resultado trágico que conhecemos. Quanto a Lula, para que a história não se repita como farsa ou tragédia, só resta a ação dos democratas, os mesmos que deixaram de lado as diferenças para pôr um fim ao governo dos bandos acima referidos, que se mantenham atentos e fortes na vigilância do normal, como cantava Zé Ramalho. O caminho é longo e incerto, mas é a única possibilidade de que o Haiti não seja aqui, como alertou Caetano.

 

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(*) Jornalista e presidente da Fundação Cultural Cidade de Aracaju (Funcaju).

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Luciano Correia

Jornalista e presidente da Fundação Cultural Cidade de Aracaju (Funcaju).

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