Outras palavras

Guetos, favelas e fuzis – banho de sangue e o contrasenso da cultura de paz

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Prof. Dr. Claudefranklin Monteiro Santos

 

Com as desculpas de modernizar a cidade do Rio de Janeiro e de combater epidemias, quando o presidente da República Rodrigues Alves (1902-1906), apoiado pelo prefeito Pereira Passos, levou adiante a demolição de cortiços, o alargamento de avenidas centrais, entre outras ações, ficou clara a resposta que o Estado dava e segue dando ao menos favorecidos: vocês não são bem-vindos, são um empecilho ao “desenvolvimento” e ao “progresso”. E mais: não tenho, frise-se, o Estado, nenhuma responsabilidade por vocês.
Rodrigues Alves, 5º presidente do Brasil (1902-1906)
Foto: Wikipedia

O tempo só fez agravar a situação de desprezo, complexando o quadro social brasileiro, marcado por uma enorme fissura entre ricos e pobres. A estes, além da miséria, falta de trabalho e de outras condições dignas de existência, restam também a criminalidade e agora o algoz do tráfico e da milícia, incrivelmente organizados, frente a um Estado corrompido, inoperante, inútil e sem forças para impor a ordem, sem que para isso faça uso da força letal e exterminadora, passando um trator por cima das garantias constitucionais.

Em 1985, primeiro ano da redemocratização do Brasil, Gilberto Gil traduziu bem o caos social e moral em que ainda estamos mergulhados, com a canção “Nos barracos da cidade”, do álbum “Dia Dorim, Noite neon”. Ainda somos, em sua maioria, governados por “gente hipócrita” e “gente estúpida”. Os descendentes daquelas pessoas jogadas à margem da sociedade por Rodrigues Alves e Pereira Passos continuam sem acreditar e se iludir “no poder da autoridade de tomar a decisão”. Chegamos a um ponto de termos um sistema de poder viciado, que não “consegue enfrentar o tubarão”, hoje, sob a denominação de narcotráfico e, também, de milicianos de plantão.

E segue a canção tratando de questões que vimos acontecer nas últimas semanas, notadamente, na mesma cidade do Rio de Janeiro, mas que reflete o que tem sido regra em todo o país, refém, para além da incompetência dos seus gestores públicos, de gente que subverte a ordem que o Estado deveria garantir, valendo-se de mecanismos que não fossem o extremo do derramamento de sangue, da carnificina e também da exposição mortal de agentes do Estado, também vítimas de um sistema carcomido pela corrupção, onde “o governador promete” e ele, o sistema, diz não.

Valendo-me da metodologia utilizada pelo médico, educador e sociólogo sergipano, Manoel Bomfim (1868-1932), entendo que a explicação para o que vimos nas últimas semanas pode ser encontrada em algumas de suas ideias, como na afirmação que segue:

Eis o Estado: uma realidade à parte, em vez de ser um aparelho nascido da própria nacionalidade, fazendo corpo com ela, refletindo as suas tendências e interesses… um organismo que tem existência e faculdades próprias… apesar disto, mesmo formando uma realidade à parte, o Estado poderia aproximar-se da nação, se o regime seguido se inspirasse efetivamente nos interesses e necessidades naturais do país (América Latina: males de origem, 1903, p. 190)

Quem está doente não é o paciente (o povo), necessariamente, mas o médico (o Estado). No afã de extirpar a doença (o narcotráfico, por exemplo), o médico põe em risco a saúde do paciente ou entende que todo ele está tomado por algum tipo de câncer incurável (como as milícias), submetendo-o a um tratamento que ao invés de evitar a doença, quer eliminar o tumor deixando sequelas ou mesmo adoecendo outras partes do corpo. É a tal história de jogar a água suja da bacia, junto com a criança; ou de matar o joio sem antes colher o trigo e cuidar que este germine e prospere, sem espaço para que o joio cresça e prejudique o terreno.

Cláudio Castro, governador do Rio Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

O governador Cláudio Castro, motivado, tão somente pela necessidade de se manter no sistema (uma vez terminado seu mandato de governador, almeja o Senado), empreendeu, no último dia 29 de outubro, uma “megaoperação” para tentar debelar o avanço do comando vermelho em áreas periféricas do Rio de Janeiro. O resultado “foi um sucesso”, para ele e para uma turma de extrema direita que defende o seu tipo de política pública (já demonstrada ineficiente em outras épocas, inclusive na presidência de Jair Bolsonaro). A morte de quatro policiais foi um “efeito colateral”, enquanto as outras mortes — leia-se nas entrelinhas —, foram consideradas necessárias.

Penso que, quando um Estado chega a este extremo apenas atesta a sua incompetência. Politicamente, era necessário repor a extrema direita na disputa política, pois há quem aplauda a morte de foras da lei como solução para os problemas de segurança pública, quando sabemos que não é a história demonstra isso. E nesse conjunto de absurdos, o maior deles foi um pequeno grupo de governadores, à revelia dos demais e, portanto, da nação, estabelecer a criação, entre eles, como a um “clube do bolinha”, de um “consórcio de paz”. Mais uma vez a ideia de paz para além de travestida, errônea e imoralmente utilizada para fins que não sejam os que sustentam a “cultura de paz”: “um conjunto de valores, atitudes e comportamentos que rejeitam a violência em favor do diálogo, do respeito, da justiça e da solidariedade”.

Embora a chamada “bem-sucedida” megaoperação de Cláudio Castro já esteja lhe rendendo politicamente, penso que a sociedade está diante de um dos maiores exemplos de falência do Estado, como preconizava estudiosos a exemplo de Manoel Bomfim. Com isso, não quero minimizar as ações nocivas de traficantes e milicianos no Rio e tampouco no Brasil. Antes, estas, se seguem ocorrendo e crescem é porque o Estado não dá conta e nem deu historicamente de atender aos reais interesses da sociedade, transformando-se num lugar de garantias de privilégios, enriquecimento ilícito e de desprezo às necessidades daqueles que ele mesmo ajudou a criar desde o início do século passado, inclusive os traficantes e os milicianos.

 

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Claudefranklin Monteiro

Professor doutor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe.

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