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Luciano Correia (*)

 

Para que serve a poesia e a arte de forma geral? Essa é uma questão que acompanha a vida desde sempre, com correntes de todo tipo, dos que defendem uma arte engajada, revolucionária, aos que consideram que a arte basta em si, sem a necessidade de cumprir funções sociais. Longe de mim querer entrar nessa discussão que, ademais, não é terreno seguro para pisar. E por ser assim, me reservo o direito de exercer meu gosto sob o prisma mais simplório do mundo, o do meu gosto. Desconfio que admiro alguns dos grandes mestres da pintura, mas a coincidência com os critérios que os tornaram grandes é puramente casual, afinal, não gosto de outros tantos considerados vacas sagradas das artes plásticas e visuais.

Assim é para mim com a poesia: gosto ou não gosto, me toca ou não. Quer dizer, também não vamos depreciar minha capacidade de ver a boa poesia. É que este é um campo das artes dos mais delicados, verdadeiro pântano onde o joio se mistura ao trigo sem vergonha nem cerimônia, de maneira que os incautos compram gato por lebre. É por excelência também o campo em que lobistas com amplo acesso às mídias ou distribuidores de jabás contrabandeiam seus falsos talentos como se houvesse mérito em sonoras porcarias pretensiosas.

E há os chatos, estes em número maior, a todo momento nos importunando com uma baixa poesia, geralmente cifrada por imagens muito particulares, que só dizem respeito aos devaneios do dono do poema. São os hermetismos que, por serem herméticos, autorizam imbecis batizados trafegarem impunemente por melecosas academias disso e daquilo que de uma hora pra outra infestaram as cidades brasileiras. A produção “artística” que pulula nessas casas emboloradas de cultura e costumes é, ela mesma, a pior inimiga das artes e das letras, pelo embuste que embutem.

Saindo da frescura da cultura inútil para as delícias da poesia que nos toca os calcanhares, eis que chegamos aos “Poemas Passageiros” de Jeová Santana, um sergipano de Maruim, professor de literatura aposentado da rede estadual e em atividade na Universidade Estadual de Alagoas, onde vive atualmente, entre os sertões graciliânicos e aquele mar de doer a vista em Maceió. Jeová também apresentou durante alguns anos um programa sobre literatura na Aperipê FM, nos anos em que presidi aquela Fundação.

Os poemas de Jeová não são feitos pra virar livro, ele derrama poesia em cada boteco de esquina, ao perguntar as horas a uma moça bonita ou feia que vende amendoins nas calçadas ou nas mensagens por e-mail e WhatsApp. Sempre que troco dois ou três dedos de prosa (ou poesia?) com esse sarcástico leitor de poesia e prosa, penso que cada chiste, cada trocadilho barato, cada ironia fina caberiam nas páginas de livros, para empurrar deles, os livros, a cafonice piegas que geralmente impregnam de chatice suas páginas. Não têm esses artistas que se veem mudando o mundo? Pois vejam o que ele diz no poema A Galera:

“Depois de quatro horas detonando o sistema/ os meninos do rap foram céleres/ receber o cachê da prefeitura”.

Jeová tanto brinca quanto faz chorar. Em Oração dos Meninos do Brasil, curta e triste, ele clama:

“Bala perdida/ não ache meu pai./ Deixa ele vir pra casa/ uma vez mais”.

Da preocupação com os dramas sociais ao amor, o velho e bom amor nesses tempos de cólera, bálsamo de salvação dele e quem mergulha nos seus delírios, como em Ode ao Umbigo:

“Traço uma linha imaginária/ entre duas montanhas/ e um vale fosco./ Faço, da língua, periscópio/ e vasculho a fresta/ Por onde brotou a vida./ Desejo um córtex/ Que fosse ao cóccix/ Para desvendá-lo./ Ainda bem/ que ele anda ao sol. / Soubesse sua dona/ Do perigo que emana/ desse olho do cão/ tapava-lhe a visão./ Isso deixaria mais opacos/ os dias do poeta/ nesse mundo vão.”

Jeová já é calejado de ofício. Tem outros livros de poesia e de prosa, sobretudo no conto, onde navega com a mansidão de quem arrebatou muitos prêmios. Este seu Poemas Passageiros foi um lançamento bilingue, com tradução para o espanhol da professora Raquel La Corte, da UFS, numa noitinha simpática no complexo O Paiol, um oásis incrustado numa Atalaia que já não guarda nada de velha, senão as boas lembranças, em meio a essa modernização horrorosa da nossa tara por orlas. Foi também uma noite em que os gatos pingados da literatura da árida Aracaju puderam tomar uma cerveja e, entre um gole e outro, saborear poesia, como a que Jeová pregou na contracapa do livro:

“Um gatinho espatifado no asfalto/ Um cachorro dentro de uma bolsa plástica/ Um velório ao dobrar a esquina/ Ah, esse mundo.”

 

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Luciano Correia

Jornalista e professor da Universidade Federal de Sergipe

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