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Prof. Dr. Claudefranklin Monteiro Santos (*)

 

Por ocasião de meus estudos de Mestrado em Educação pela UFS, pude, por conta de meu objeto de pesquisa (produção de livros didáticos na primeira metade do século XX), ter acesso a leituras sobre a concepção de infância daquele tempo e sobre como as crianças eram tratadas, seja na fase de desenvolvimento da vida, seja na vida escolar. Para tanto, destaco trabalhos como os de Philippe Ariès (1914-1984). O historiador francês discutia a ideia de uma criança tratada como se fosse um “adulto em miniatura”. Com o avanço dos estudos no campo da psicologia e da psiquiatria, pôde-se perceber os males que isso causou às crianças, em particular, nos planos emocional e cognitivo.

Em tempos de um justo debate em torno da adultização infantil em nosso tempo (intensificado pelas denúncias de Felca) e da urgente regulamentação disso, principalmente no que diz respeito ao combate a crimes de agressão ao natural desenvolvimento da criança, sem que sua infância seja explorada e roubada, recorro às minhas memórias para pensar sobre a importância da criança viver saudavelmente a sua infância e ter de volta o seu direito de ser e vivê-la em sua plenitude, protegida de criminosos na vida real e também nas redes sociais.

Emulsão Scott

Na perspectiva da memória afetiva, no que diz respeito aos sentidos, o carro-chefe do presente texto é o Emulsão Scott, uma espécie de xarope cremoso, indicado para tratamento de carência de vitaminas A e D. Hoje, tem até sabor morango. Há quem discorde, mas acho uma delícia, em particular, o cheiro de peixe que exala pelas narinas ao ingeri-lo. Trata-se de um produto norte-americano (espero que Trump não resolva taxá-lo), feito do fígado do bacalhau, criado em 1876 por Scott and Bowne, em Nova Iorque, e implantado no Brasil em 1885. Voltei a consumir recentemente, uma colher de sopa, após o almoço. Coincidência ou não, logo após uma virose, que não se curava com remédio algum, e de cujo consumo não me resta mais sequer aquele pigarro persistente. Efeito psicológico ou não, ando até com mais disposição e enxergando melhor (risos).

Ora, que tem o Emulsão a ver com a infância e com a boa infância? Tudo (risos outra vez). Quem, da minha geração (anos 70), não precisou, a fórceps, de nossos pais, fazer uso dele? Seja para recuperar as vitaminas acima citadas, seja para tomá-lo misturado com Biotônico Fontoura (criado em 1910). Quanto a este, tem uma tese circulando por aí, que o seu alto teor alcoólico teria sido responsável por nossa geração ser muito chegada a consumo de uma boa cerveja gelada ou a um excelente vinho, ainda que de menor categoria. Seja como for, sobrevivemos, e estamos aqui para contar história.

Aquela criançada não tinha celular, videogame, TV era em preto e branco — e só depois em cores — brincava na rua sem medo, e não ficava horas e mais horas numa total inanição na frente de uma tela, ocupando a mente para a alegria da oficina do diabo. Não, a gente vivia mesmo a infância! Não só estudava, mas brincávamos e muito! Os riscos aos quais nós estávamos expostos, eram combativos ou curados não somente por Emulsão e Biotônico Fontoura, mas também por uma série de outras coisas, às quais passarei a listar, correndo o risco de alguma coisa ter ficado de fora. Mas aí, você leitor de minha faixa etária (cinquenta e pouquinho) vai completando.

Imagem: Redes sociais

Se “trupicasse” na rua e chegasse em casa com algum ferimento, nada melhor do que água oxigenada, mertiolate ou até mesmo violeta. Era uma delícia de dor (só para amenizar o drama). Quem não lembra daquela espuminha que se criava quando a água oxigenada era colocada sobre a ferida? Ou daquele ardor “maravilhoso” (que conduzia a gente no outro mundo e voltava, junto com a alma”), quando a pazinha de mertiolate tocava na “pereba” ou no pedaço de pele “estrupiado”? Passado tudo, ou gazes com esparadrapo/Ban-Aid;  e se não pudesse cobrir, a boa e velha violeta, “enfeitando” a pele para delírio da turma que gostava de pôr apelido na gente ou mangar mesmo da desgraça alheia. Em último caso, a depender da infecção, a boa e velha injeção de benzetacil, que eu insistia em tomar no braço (doideira, né?). Ainda bem que os testes de alergia a benzetacil não demoraram a chegar, pois perdi um tio materno (Adelson), por conta disso.

Ainda nesse patamar de ferimentos de pele ou algo do tipo, quem nunca usou iodo para destruir as intermináveis verrugas? Eu usei muitas vezes, com direito a algumas cicatrizes que foram sumindo com o tempo. E as populares “frieiras”, que eram tratadas com alho ou vinagre de maçã. Ou o impopular chulé, para o qual usava-se cebola vermelha ou talco. O piolho era combativo com neocide. A sovaqueira, com Minâncora. Água inglesa para má digestão. Oléo de rícino para hidratar a pele. Sem falar nos benefícios milagrosos da alfavaca e do chá de limão, com cebola, alho e cravo. E claro, mastruz com leite para de tudo um pouco: intestino, matar parasitas, dores musculares, problemas respiratórios. Só não me recordo se servia também para espinhela caída.

A bem da verdade, caríssimos(as) leitores(as) nós erámos e fomos crianças. Criança de rua, criança da praça, criança na chuva, criança com ou sem brinquedo, criança no parque, criança na escola, criança de verdade; também sob alguns riscos, mas protegidas pelos pais, como deve ser, e pelos adultos de boa índole, por instituições sérias; pela lei, só muito tempo depois (Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990). E que hoje, precisam, com urgência urgentíssima, terem direito à infância, longe, muito longe, de pedófilos, exploradores de menores e criminosos que agem abertamente nas redes sociais, sem punição. Malditos sejam estes e que prevaleça a promessa de Cristo quando disse:

“Qualquer que escandalizar um destes pequeninos que creem em mim, melhor lhe fora que lhe pendurasse ao pescoço uma pedra de moinho e se afogasse na profundeza do mar” (Mt 18,6).

 

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Claudefranklin Monteiro

Professor doutor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe.

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