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Léo Mittaraquis (*)

 

“A névoa o envolvia tudo e os olhos verdes da mulher resplandeciam na escuridão… Vem…, vem…”

A. Bécquer

 

Dizem de coisa mal feita e confusa: “isso é um angu com caroço”. Mas, creiam, um caroço de umbu também pode causar perrengue e render história.

Por volta das três da tarde, fora eu à livraria do Pereira, pegar a obra que encomendara ao amigo e livreiro: O Existencialismo é um Humanismo, de Jean-Paul Sartre, pela Presença, uma notável editora portuguesa.

Lançamento do ano, assim considerado, assim recebido, pela comunidade acadêmica especializada e, também, por quem, pura e simplesmente, amava ler, pari passu às obras de ficção, também as ensaísticas.

Que mal recorde, o livro já tinha circulado por aqui, sem alarde, nos anos de 67 ou 68. Entretanto, foi redescoberto mais adiante. Afinal o existencialismo, percepção filosófica pra lá de sedutora, passara a ser referência tanto para quem lecionava filosofia, como para quem transitava, fosse aluno ou mestres, nas demais ciências humanas.

Na livraria, Pereira já me aguardava com o livro embalado em papel manilha, amarelado. O barbante passado em cruz e arrematado com laço firme, fazia do pacote um testemunho da maneira gentil e grave pela qual o livreiro atendia seus, como costuma dizer, “mais que seletos clientes”.

E pensara eu, ao receber o pacote, que cada livro assim guardado carregava não só o peso das páginas, mas também a memória de gestos que já não se veem — a paciência do nó, a firmeza do laço, a escolha de um papel que envelhece com dignidade. Como se a leitura começasse antes da abertura, num rito silencioso, lembrando que a palavra impressa não é passagem, e que todo cuidado posto no empacotar é, em verdade, um cuidado posto na alma de quem ama ler.

Ficáramos ainda, eu e Pereira, mais de meia hora entregues à conversa lenta, dessas que não se medem pelo tempo, mas pelo modo como se às estantes em volta, às lombadas caladas que pareciam escutar. Faláramos de livros, é certo, mas também do que se esconde entre eles: o destino dos homens, a fragilidade da memória, o consolo que só o silêncio escrito oferece.

Eu já ia pela Rua Cláudio Fagundes, batizada, dissera-se, em honra a um jurista de mão firme e olhar severo, ao perceber que o leve peso do livro ainda me acompanhava, discreto, como se insistisse em lembrar que certas leituras tornam-se bússolas.

O sol caíra oblíquo sobre os paralelepípedos, e um murmúrio distante, indefinível, parecera oferecer um fundo quase musical aos meus passos lentos, e à memória da conversa com Pereira, ainda viva como se cada palavra tivesse deixado uma marca indelével no ar.

Tomara a travessa Gerenciano Moncíllio, pela esquerda, em direção à bodega. As pedras irregulares do caminho refletiram luz mortiça do entardecer, o vento trouxeram cheiro distante de carvão, pão recém-assado. Cada passo parecera prolongar o tempo, como se a própria rua tivesse memória e guardasse lembranças de passos antigos. Ao dobrar a esquina, avistara a placa envelhecida da bodega, balançando suavemente. Sons de risos e vozes me convidavam a entrar, deixando para trás o resto do mundo.

Na Bodega, além do próprio Adeodato, encontrara Sileno, que trabalhava na borracharia, e Terêncio, gerente da fábrica de tecidos. Sentados à mesa, compartilhavam uma garrafa achatada de Rosé do Porto Mateus, pedaços de tripa frita, linguiça da casa, pão com manteiga, num ritual íntimo e, já na época, tido como muito antigo.

O riso surgira fácil entre eles, a conversa correra solta, e eu a observar, a compreender que camaradagem e comida simples carregavam, juntos, certa solenidade — uma pequena celebração da vida cotidiana, ali, entre paredes gastas e prateleiras cheias de garrafas, caixas e histórias.

Juntara-me a eles, puxando a cadeira que rangeu como se protestasse contra mais uma confidência a ser escutada. Adeodato me serviu um copo sem perguntar o que eu queria, como quem conhece de antemão a sede do outro. Sileno, com as mãos ainda manchadas de graxa, contava histórias de estrada, e Terêncio, sempre elegante no falar, intercalava observações sobre a fábrica e sobre a vida: entendia cada uma como parte essencial do estar no mundo.

Ambiente, na época, tipicamente masculino, feito de vozes graves, de tilintar dos copos grossos, do silêncio cúmplice que se instaurava entre uma história e outra. A mesa era território de disputas sutis, onde cada palavra trazia o peso de uma experiência vivida e o desejo de afirmar presença.

Mas não significava confronto. Não havia pressa: o tempo parecia alongar-se na fumaça dos cigarros e no ritmo lento dos copos esvaziados. Foi quando uma voz feminina a cantar se fez ouvir…

Uma voz suave e inesperada, atravessara o ar úmido e gorduroso, e se fizera clareira entre os homens. A conversa cessara, todos, eu inclusive, partilharam do mesmo sobressalto.

Eis que se materializa, na porta da bodega, Jussara, vendedora de umbu, cesto enorme na cabeça, vestido simples abaixo dos joelhos. Os verdes olhos dela, vivos e atentos, percorreram a sala, medindo olhares e gestos.

Não era uma desconhecida, porém, nunca houver, antes, pendido para aquelas bandas. Costumara oferecer sua mercadoria pelas ruas próximas e na praça. E raramente àquela hora da tarde.

Terêncio, um pouco refeito, mas ainda a tartamudear, a inquira quanto a isso. Ela meio que se explicara, ao dizer que viera visitar velha amiga de sua mãe.

Num gesto ágil desceu o cesto até o piso, feito de canga de minério. No curvar-se farto e arfante decote inundou visão ávida. Enquanto isso, Sileno já saltara da cadeira, atacara o cesto e enchera mão com frutos da “árvore sagrada do sertão”, como bem denominara Euclides da Cunha, que repousavam como joias agrestes: verdes e dourados. Lançara um na boca sem deixar de mirar outros frutos, aqueles proibidos, semiocultos. Uma explosão de ácido frescor envolvera língua e palato. A salivar, Sileno visara mais um alvo, boca de Jussara a sorrir perfeitamente.

Essa conjunção de fatores inopinados fizera com que o pobre coitado se esquecesse de que ainda aninhava o caroço na boca, o qual, de súbito, escapara para trás e obstruíra a goela.

Sileno lançara ao ar som gutural.

Mãos à garganta, num gesto desesperado.

Copo tombou, espalhando vinho sobre a mesa.

Nos erguemos todos, por um momento atônitos, mas logo o abraçamos por trás e forçamos, num abraço firme, a expulsão do caroço.

Um silêncio denso pairou, quebrado apenas pela tosse rouca de Sileno. Repentina gargalhada de Jussara foi contraponto. Devolvemo-lhe expressões de desaprovação e censura. Foi o bastante para que erguesse cesto, pusesse sobre rodilha já arrumada sobre a cabeça, e partisse em silêncio.

 

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Leo Mittaraquis

Léo Mittaraquis é graduado em Filosofia, crítico literário, mestre em Educação. Bodegário da empresa Adega 7 Instagram: @adega7winebar

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