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O brasileiro não quer ser cidadão

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Emerson Sousa (*)

Em uma parte da letra de Haiti, composição de 1993, de autoria de Gilberto Gil e Caetano Veloso, depois de ouvir um relato sobre o cinismo social perante um ato de violência institucional historicamente enraizado, a pessoa dá de cara com uma declaração de enorme crueza: “Ninguém, ninguém é cidadão!”.

Em seu conjunto, o relato feito pelo poema sintetiza bem a fórmula de uma sociedade que não tem o mínimo compromisso com uma prática cidadã que se apresente ampla, geral e irrestrita: a opressão criminalizante da pobreza em junção com a miopia social de alguns poucos remediados e rarefeitos abastados.

Esses versos vão ao encontro daquilo que outro baiano, o geógrafo Milton Santos, quando em entrevista ao cineasta Sílvio Tendler, no documentário O mundo global visto do lado de cá uma vez constatara:

“O Brasil jamais teve cidadãos; nós, a classe média, não queremos direitos, nós queremos privilégios, e os pobres não têm direitos; não há, pois, cidadania neste país. Nunca houve!”

Sim, nós nunca fomos cidadãos. A gestão das nossas relações sociais de produção não o permite; nós somos filhos da escravidão e, tal qual previra Joaquim Nabuco, ela ainda é a nossa principal característica nacional.

Milton Santos, em sua obra o Espaço do Cidadão, deixa claro que a base da cidadania é o reconhecimento de que qualquer pessoa ao nascer traz consigo um conjunto básico de direitos dentre os quais estão a liberdade, a dignidade e o bem-estar, em qualquer lugar que ela esteja.

A cidadania pressupõe um nível de simetria entre as pessoas. Isso implica em que uma jovem do interior tenha condições para recusar a proposta de trabalhar num domicílio na capital apenas em troca de teto, comida e alguns poucos tostões ou que um idoso se veja obrigado a voltar a trabalhar para garantir o sustento dos netos.

Quando a cidadania é plena, como o é nos países nórdicos, o dono da repetidora de TV é atendido no mesmo hospital que o vigilante, e o filho do operador de máquinas pode estudar na mesma universidade que o do usineiro de cana-de-açúcar.

Nesse sentido, políticas públicas e serviços universais e gratuitos são vetores de ampliação dos níveis de cidadania. São eles que vão promover essa equalização social, dando condições às pessoas de serem donas de suas próprias vontades.

Num ambiente cidadão a mediação das relações sociais requer algum grau de regulação estatal, porque as interações econômicas privadas são sempre marcadas por algum desnível entre as partes. Algum dos dois sempre tem mais poder que o outro e se utiliza disso para impor as suas condições e, geralmente, isso resulta em abuso de poder. Se não houver sinalização política em contrário da sociedade, a injustiça se estabelece.

Contudo, o brasileiro nunca teve interesse na disseminação de uma cultura cidadã. O nosso empenho sempre foi, como se diz em alguns lugares do Nordeste, pela “peixada”, pela carteirada, pelo compadrio.

A Constituição de 1988 foi um esforço no sentido de sedimentar uma cultura cidadã, porém o brasileiro não se interessou por isso. Pelo contrário, sempre convalidou as mais diversas formas de ataque à Carta Magna. Sim, nós somos cúmplices!

Ocorre que, de 2013 para cá, nós “Nunca fomos tão brasileiros. Afinal, o nosso povo foi para as ruas – paradoxalmente com o discurso pró serviços públicos – praticamente sabotar a cidadania.

De lá para cá, pavimentou-se o caminho da destruição do princípio da cidadania. A Reforma Trabalhista, o Teto dos Gastos e a Contrarreforma da Previdência são medidas que buscam minar os direitos do cidadão brasileiro porque elas acentuam mais ainda as nossas históricas desigualdades sociais.

E nós permitimos isso!

Contudo, nada pode ser tão ruim que não possa piorar e os 57 milhões votos concedidos ao Sr. Bolsonaro, na última eleição presidencial, foram a cereja do bolo desse processo.

Quem votou nele, mesmo que não o soubesse, aprovou um projeto de consolidação da transformação do cidadão em um mero consumidor, onde são os boletos pagos (e não os direitos sociais) a garantia da dignidade da pessoa. E não há nada mais antibolsonarista do que a palavra “Direitos”.

Não é por acaso que esse tipo de gente odeia o termo “Direitos Humanos”, porque são os direitos que constituem a pessoa cidadã e direitos significam a aceitação geral de que o desenvolvimento social é uma construção social e não fruto do esforço individual.

Assim, se o Brasil quer ser um país civilizado algum dia, ele precisa resgatar o discurso da cidadania e pô-lo em prática e isso, em um primeiro momento, significa recuperar a dignidade de nosso povo por meio da oferta de serviços públicos universais, gratuitos e de qualidade.

(*) Emerson Sousa é doutor em Administração pela NPGA/UFBA e mestre em Economia pelo NUPEC/UFS.

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Doutor em Administração pelo NPGA/UFBA e mestre em Economia pelo NUPEC/UFS

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