Outras palavras

Água pouca, meu chá primeiro

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Prof. Dr. Claudefranklin Monteiro Santos (*)

 

Iniciei este ano, lendo de um só fôlego, mas, ao mesmo tempo, sorvendo cada palavra e ideias como a um manjar delicioso, o livro A memória da água, de autoria de Emmi Itaranta. Assentei minhas considerações a respeito por algum tempo, no fundo de minha mente e coração, pois seu conteúdo me levou à necessidade de ler outra obra. Refiro-me a O Livro do Chá, de Kakuzo Okakura.

Embora escritos e publicados em tempos distintos (2015 e 1906, respectivamente), os textos se encontram e se atravessam, sobretudo no que diz respeito a questões muito atuais e a ensinamentos milenares que precisamos revisitar e que não estão tão distantes de nós, mas apenas subsumidos por nossa ânsia de querer, acumular e poder.

Dou primazia à antiguidade, começando, desse modo, por O Livro do Chá, que ao contrário do primeiro não é ficção, embora esteja escrito de forma literária. Trata-se de um tratado de História e de Memória Cultural em torno de uma das culturas mais antigas do mundo, a feitura do chá, e todas as suas implicações. Para seu prefaciador e também autor do posfácio da obra, Hounsai Genshitsu Sen, é “(…) um esforço pioneiro no sentido de construir uma ponte entre o Oriente e o Ocidente”. Além disso, é uma obra contextualizada, pois foi escrita num lugar e num tempo específico para atender a demandas de sua temporalidade de produção. Início do século XX, escrita por um japonês aculturado norte-americano e britânico, que versou sobre um Japão que acabava de sair de uma guerra vitoriosa contra os russos, mas que também se abria para as influências ocidentais cada vez mais industrializadas.

O resultado bem poderia ser definido, explicado e compreendido a partir do conceito de “circularidade cultural”, proposto e apresentado pelo historiador italiano, Carlo Ginzburg, hoje com 86 anos de idade e cujos livros e ideias ainda influenciam sobremaneira a pesquisa histórica. Para fins de reflexão, valho-me de algumas passagens de Kakuzo Okakura: “Quando o Ocidente compreenderá ou tentará compreender o Oriente?” (p. 32); “(…) O missionário cristão vem para dar e não para receber” (p. 33); “(…) O homem branco escarnece de nossa religião e de nossos costumes, mas aceita a bebida marrom [chá] sem hesitar” (p. 35); “(…) Diz-se que os gregos eram magníficos porque nunca copiaram os antigos” (p. 78). E quem diria que um dia o antigo chá da Índia, da China e do Japão fosse dar no que falar, provocar e mudar! E nesse sentido, o autor foi genial, nessa perspectiva da “circularidade cultural” em afirmar: “(…) A obra-prima é tão nossa quanto nós somos da obra-prima” (p. 85).

Por outro lado, e não sem importância, claro, Memória da Água é uma magistral peça literária de uma escritora finlandesa de nosso tempo, Emmi Itaranta, atualmente com 49 anos de idade. Um olhar europeu sobre a cultura oriental, tendo a água como a sua inspiração, num mundo pós-apocalíptico, dominado pela China, onde a sua escassez a determina como a maior riqueza do mundo e, por isso mesmo, na sua condição de “falta de”, dotada de uma memória de um tempo em que foi abundante e que poderia ter sido melhor cuidada, nos remetendo à máxima que diz que lembrar é poder, tanto quanto esquecer.

E nesse sentido, a autora tece uma intricada e ao mesmo tempo leve e envolvente narrativa em torno da personagem Noria, uma jovem camponesa, filha de um grande Mestre do Chá, que guarda um grande segredo capaz de despertar a ira das autoridades e do governo, autocrata e tirano. Seu estilo literário me vez recordar uma outra leitura e autor que me marcou profundamente, durante meu doutoramento: “Orhan Pamuk” (72 anos, turco, Prêmio Nobel de Literatura de 2006), em seu O livro negro, de 1990. A mesma sutileza e jogo de palavras, com uso de cores, sons e sensações como estes tivessem vida e materialidade, sobretudo em passagens como as a seguir: “(…) A escuridão nos recebeu com um estrondo” (p. 15); “mergulhar no silêncio” (p. 34); “sombra paciente” (p. 40); “silêncio pesado” (p. 70); “(…) a palavra fez o tempo parar ao meu redor” (p.155).

Em comum entre as obras, para além da temática oriental, estão a água e o chá. São enredos distintos, cada um no seu quadrado (História e Literatura) e ambos se atravessando o tempo todo, que lançam luzes para o nosso tempo, com ensinamentos, reflexões que fariam até mesmo Confúcio para por um instante de escrever e filosofar para pensar, por exemplo, na vida, na necessidade de viver, de dar valor às coisas mais simples e até mesmo banais, como a beleza de uma flor, o sopro solitário do vento, o valor da amizade, enfim, uma infinidade de situações às quais, tento, para fins de conclusão, representar nas seguintes passagens: “(…) Querem o caro, não o refinado; o que está na moda, não o belo” (Okakura, p. 90); “(…) Acredito que seja possível mudar a superfície das coisas e ainda assim manter o centro delas intacto. Da mesma forma que é possível manter as aparências, mas cultivar o centro oco” (Itaranta, p. 113).

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Claudefranklin Monteiro

Professor doutor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe.

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