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Por Luciano Correia (*)

 

Depois de 31 anos marchando todos os dias para os confins da antiga Rodovia Sarney, hoje Inácio Barbosa, dei adeus a meu pedacinho do Mosqueiro, onde busquei um exílio voluntário para realizar o sonho de um tabaréu vindo do interior: eu queria dormir ouvindo as ondas do mar. É verdade que nessas três décadas dei algumas escapadas para outras lonjuras: dois anos entre Maceió e Aracaju, cinco anos no Rio Grande do Sul e sete meses em Madrid. Mas enquanto flanava por aí, mantinha ativo meu guarnicho tropical atlântico.
Jão Cabeça Quente: novos desafios na escola

A retomada de uma rotina acadêmica na UFS não foi tanto o motivo, mas as dificuldades para equilibrar meu corre com as novas necessidades do pequeno Jão Cabeça Quente, essa figura que veio ao mundo ainda ontem e hoje teve seu primeiro dia de escola. Com apenas um carro, não é fácil viver num Mosqueiro quase tão inóspito quanto há trinta anos, quando o comércio rareava, entre uma precariedade absurda e a pobreza de ofertas. O gasto com combustível também pesou na nossa decisão.

Quando fui realizar esse desejo de morar no mar, 100 por cento dos que me conheciam diziam que era longe e deserto. Era o espírito de província falando pelos moradores de uma capital acanhada, cuja diferença com Itabaiana, como diziam meus ceboleiros, era a quantidade de postes de luz e água salgada. Estavam certos. Os vinte ou trinta minutos pra chegar nos meus trabalhos no Centro eram uma viagem lúdica, à beira mar, pensando em tardes ensolaradas e sereias nas areias.

Quando pensou e construiu a Sarney, João Alves de fato abriu uma nova fronteira. E uma paisagem linda veio de bônus. Os anos passaram e o caminho do trabalho piorou mil por cento. O trânsito se emburreceu, com seus motoristas burros. Os governantes amesquinharam uma avenida que só queria ser passagem ao lado do paraíso. A última reforma na pista foi a pá de cal. Tiraram o velho asfalto original, ainda dos anos de 1980, e puseram uma borra que se desmancha com vento e chuva. Achando pouco, construíram um muro de pedras entre os dois sentidos da via, segregando os veículos em currais apertados, sem a menor condição de ultrapassar. A reforma trouxe isto: a proibição da ultrapassagem.

O progresso traçou o caminho e a paisagem foi o presente inesperado

O discurso oficial dos governos, da redução de acidentes pela redução da velocidade, foi imposto na tora, ajudado por incontáveis radares caça níqueis que agora infestam os dois grandes corredores do litoral sul, a rodovia dos Náufragos e a própria Inácio Barbosa. Mais que o peso da gasolina no bolso, pesou o estresse de negociar ultrapassagens com motoristas-bandidos a cada 50 metros. A viagem do meu condomínio para a UFS hoje não dura menos que 50 ou 60 minutos, em céu de brigadeiro. Se chuviscar, com a tigrada que temos nos volantes, o percurso sobe para uma hora e meia. Joguei a toalha. De modo que hoje, como cantava Caetano bem lá atrás, foi o dia em que eu vim-me embora.

Tom, soberano, em sua casa no Mosqueiro

Deixei o Mosqueiro com a incômoda sensação de que pode ser definitivo e uma persistente dor no coração com a tristeza do gato Tom. Como se sabia amplamente, nunca gostei de animais, até que na meia idade fui arrebatado pela ternura de um bichaninho malandro, um pé-duro com ar de aristocrata que fez mudar minha visão da vida. Me ensinou o sentimento da compaixão e melhorou meu passeio pelo mundo. Ele me tem como pai, e eu o tenho rigorosamente como um filho. Foi quando conheci o tal amor incondicional, carinho sem taxas e tarifas a pagar.

Hoje, enquanto arrumávamos malas e sacolas e recolhíamos tralhas que seguiriam para a nova morada, Tom espreitava silencioso, de longe, num canto cabisbaixo. Tenho certeza de que intuiu nosso movimento lá dentro de sua pequena alma nobre. Olhava, só olhava, sem miar nem pedir nada. A única coisa que vinha dele era uma infinita melancolia.

Tom não quis ser como o cachorro que caiu da mudança. Ele é amor puro e sincero, mas é também território. Aquela é a sua casa e lá seguirá, ajudado agora pelos meus amigos no condomínio, vigias e jardineiros que, afinal, já eram os tios daquele intrépido gatinho de elegância inglesa. Deixei, além da saudade, a promessa de todas as quintas fazer o caminho de volta, para um weekend com você, Tom. Como aquele canto de Maria saudando o anjo Gabriel, tão belo e tão doce, no Evangelho de Lucas: você fez em mim maravilhas. Papainho foi ali e volta já.

 

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Luciano Correia

Jornalista e professor da Universidade Federal de Sergipe

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Luciano Correia
Tags: Mosqueiro

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