Outras palavras

O Riacho do Navio e a revolta das águas

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Prof. Dr. Claudefranklin Monteiro Santos (*)

 

De tempos em tempos, e aqui não preciso nem lembrar o famoso dilúvio do Antigo Testamento, as águas assumem um protagonismo na história que ou vira seu curso ou estabelece novos rumos para a humanidade, que segue sem aprender as lições que elas deixam, além de bênçãos e tantas coisas boas que envolve a sua semântica, sua simbologia, sua importância econômica e, como disse, religiosa: às águas do Nilo, às águas que se abriram no Mar Vermelho, às aguas do batismo de João Batista, às aguas sobre as quais Jesus andou e às águas que correram com sangue no seu lado, na Cruz.

Esta semana, fui instado pela produção da TV Sergipe a discorrer sobre a canção Riacho do Navio, famosa na voz de Luiz Gonzaga. Considerando a tragédia climática que está acontecendo no Rio do Grande do Sul, não teve como não estabelecer uma relação e uma reflexão não somente a partir do contexto de produção da música, como também de seu caráter atemporal, pedagógico e de resistência.

Riacho do Navio é o nome de um curso d´água, um afluente do Rio Pajeú,  que nasce na Serra das Piabas, a 750 metros de altura, e que estabelece os limites territoriais dos municípios pernambucanos de Betânia e Custódia. O Pajeú, que nasce numa região chamada Brejinho, está para os pernambucanos da mesma forma que o Nilo para o Egito Antigo. Ambos são uma dádiva. O primeiro, com uma extensão de cerca de 350 km e que tem a maior bacia hidrográfica do Estado, despeja suas águas no Rio São Francisco. Ainda sobre a nomenclatura do afluente, Riacho do Navio, diz-se que se deu em razão de uma formação rochosa em forma de navio nas proximidades de sua nascente.

A canção foi composta por Zé Dantas e Luiz Gonzaga, em 1955 e gravada num compacto pela RCA Victor, lado B. É o período do início das construções de usinas hidrelétricas. No caso do Nordeste, destaque para a de Paulo Afonso, inaugurada naquele mesmo ano. Cinco anos depois, a criação da Sudene impulsionou, por exemplo, a agricultura mecanizada e irrigada. Benefícios que afetaram diretamente a naturalidade dos rios e das paisagens e, consequentemente, o comportamento da natureza.

Também foi a época do desenvolvimentismo do governo Juscelino Kubitschek, que fez com que o Brasil vivesse mais um, desde os anos 20 do século XX, boom urbanístico. Exemplo disso, a inauguração da nova capital federal, no centro do país, em 1960. Ora, aqueles primeiros anos da década de 50, também se mexeu na forma do ser humano ocupar os espaços públicos e fez também com que se migrasse da zona rural para a zona urbana com mais intensidade. No Nordeste, o exemplo mais conhecido foi o de Feira de Santana, na Bahia.

Mas, o que tudo isso tem a ver com a canção Riacho do Navio e sua relação com as recentes enchentes do Rio Grande do Sul? Tudo e mais um pouco. As afetações que fizemos ao longo dos anos, e já se vão quase mais de setenta, foram se acumulando e agora a natureza responde e, nesse particular, as águas dos rios e dos mares, como também dos lagos e dos riachos.

A letra de Riacho do Navio é uma bandeira ecológica de há muito tempo. Não somente contra à forma como as terras brasileiras se civilizaram no tempo recente, da forma predatória e desordenada, para não dizer egoísta, desrespeitosa e inconsequente. E esta tem sido a lógica do capitalismo selvagem, que além de deixar a boiada passar, nega a ciência e fecha os olhos para outra lógica chamada “mudanças climáticas”.

Nesse sentido, comungo com os versos que dizem: “Se eu fosse um peixe / Ao contrário do rio / Nadava contra as águas e nesse desafio / Saía lá do mar, pro riacho do navio”. Para além de revelar uma atitude política de contra a corrente, também é um grito de alerta, lá dos anos 50 para o nosso tempo. Simplicidade é tudo. Não sou contra o progresso ou contra o desenvolvimento, mas ambos deveriam ser, para o bem de nossas águas, mas também de nossa existência, racionalizados, ecologicamente corretos e responsáveis, preservando a natureza e respeitando os seus limites.

Segundo o empresário Humberto Mendonça, em artigo para o Diário do Nordeste (junho de 2023): “De forma metaforizada, a música propõe a filosofia de voltar para o simples, quando sugere que “se eu fosse um peixe, trocaria a imensidão do mar pela simplicidade do Riacho do Navio.” E de fato o é, pois estamos perdendo o melhor da essência humana.

Somos tão soberbos que não nos damos conta que antes de existirmos, todas as outras coisas já existiam, inclusive as águas. Aliás, é imerso em água que somos gerados até nascermos, no útero de nossas mães. Com essa atitude suicida, a espécie humana assina de forma burra e melancólica a sua própria extinção. Afinal, sem o ser humano, da forma como age hoje, a terra, o céu, o ar, a natureza e às aguas se renovarão inevitavelmente.

 

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Claudefranklin Monteiro

Professor doutor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe.

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