Outras palavras

O cheiro dos livros desesperados

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Prof. Dr. Claudefranklin Monteiro Santos (*)

 

Embora o mote do presente texto seja parte da letra da canção “Reconvexo” (1989), de autoria de Caetano Veloso — que fez para o álbum Memória da Pele, de sua irmã Maria Bethânia, que está celebrando 60 anos de carreira agora em 2025 —, achei por bem ater-me, refletidamente, sobre o seu sentido ou sobre os seus sentidos. Refiro-me à frase e não à música (risos despretensiosos e até mesmo bobos).
Estante repleta de obras ávidas por leitores

A imagem que veio à minha mente, inicialmente, foi a de uma estante empoeirada, contendo toda sorte de títulos de romances, compêndios, best sellers, didáticos, religiosos, técnicos, históricos, votivos, biográficos, regionais, teóricos, ecléticos, clássicos, canônicos, colecionáveis, catequéticos, instrutivos, populares, infantis, esportivos, memoráveis e autorais.

Não estou falando, e ao mesmo tempo sim, do meu ambiente de trabalho em casa. Mas, de outras estantes repletas de obras ávidas por leitores. Que também anseiam por limpeza, pois o pó insiste em assentar-sobre as prateleiras e sobre os dorsos de algumas páginas amareladas, normalmente por desuso.  Ou ainda por esquecimento, desimportância, mania de acúmulo e, em alguns casos, por ostentação e falsa erudição.

Meus livros, desesperadamente, clamam por meus dedos, mãos e olhos. Canetas e marca-textos também. Algumas nódoas aqui ou ali. E nesse sentido, não se trata de abandono, mas da falta de tempo para sorvê-los tantos quantos são em quantidade e qualidade.

Para além de peças decorativas de um legado importante da cultura material, os livros reúnem assuntos que desejo devorar para, antropofagicamente, parir outros assuntos, linhas, versos, textos, semântica, e também outros livros dispostos a reiniciarem o processo, em estantes, no sofá, nas mãos de quem se apodera do que não é mais meu, posto que nascido, criado é doado (pra bem da verdade, herdados ou roubados) a quem se interessar possa.

Celulose e mofo, tinta e lentes, lágrimas e risos, histórias e estórias, desesperadamente tocando as trombetas do apocalipse da leitura, da escrita cursiva e do texto corrido, inteligível e criativo, impactante, inquietante, tedioso ou provocante, que tira e dá paz, se não verossímil, ao menos com verossimilhança, com a espada de São Jorge rasgando a garganta da inteligência artificial, sob a luz de uma linda noite de lua cheia.

Eu na rede, longe das redes digitais e da TV, tateando letras digitais, com um opúsculo sobre meu colo, esperando findar este texto de fôlego curto, para, enfim, saciar a sua esperança de ter-me novamente de volta, ter a minha atenção, meus olhos e mentes cansados de um dia intenso. E assim, à meia luz, num quarto amplo, ventilador ligado, porta-retrato caído, como a um anjo amaldiçoado, completa-se a cena com este leitor atencioso, fazendo as vezes de escriba temporária e caetanamente inspirado.

 

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Claudefranklin Monteiro

Professor doutor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe.

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