Marcus Éverson Santos (*)
Fiquei cansado com a leitura do livro “A Sociedade do Cansaço”, do filósofo coreano-alemão Byung-Chul Han. É exaustivo ler filósofos que, a exemplo de Han, se tornaram alguns dos mais badalados críticos do neoliberalismo, das tecnologias da comunicação, da sociedade de consumo e, consequentemente, do capitalismo. “Cuspindo no prato que comeu e arrotando idiossincrasias por toda parte”, algumas de suas críticas são justas, enquanto outras beiram o histrionismo hipócrita, típico entre os praticantes do academiquês.
A pratica do academiquês é um fenômeno cultural onde indivíduos ou grupos de indivíduos tendem a usar uma linguagem complexa e técnica, distante do grande público. Essa forma de comunicação, além de tornar as ideias menos acessíveis, cria uma distorção da realidade, refletindo as particularidades e preferências de quem fala, ou dos grupos comunicantes no espaço restrito da elite acadêmica. Em vez de facilitar o entendimento, o academiquês tem dificultado o diálogo e a troca de conhecimentos entre aqueles que não participam do mesmo ecossistema acadêmico. O academiquês não colabora com a solução de problemas reais; quando muito, reforça apenas a autoemulação entre os pares.
A autoemulação e o academiquês não são peculiaridades do filósofo sul-coreano; marcam presença em todos os espaços de formação nas chamadas humanidades. As reflexões de Han, assim como as de tantos da mesma laia, insistem em não enxergar que as ideias que permitiram seu sucesso dentro do ecossistema universitário são as mesmas que possibilitaram a superabundância da produção de seus livros.
Ora, se são tantos os que consomem os livros de Han, não podemos escapar do óbvio: fora do sistema econômico baseado na propriedade privada dos meios de produção, determinados pela oferta, demanda, iniciativa privada, liberdade econômica, inovação e eficiência tecnológica na produção, os livros de Han jamais chegariam a tantas livrarias. Com todas as críticas justas que se possa fazer ao sistema capitalista e liberal, não há dúvidas quanto ao fato de que foi sempre nesse sistema, nunca fora dele, que se permitiu não só que mais pessoas tivessem comida na mesa, como também que pudessem comprar livros como os de Han.
Sem as técnicas de produção e reprodução que as sociedades de consumo permitiram desenvolver, as ideias do filósofo sul-coreano jamais teriam saído de Seul. As ideias contra às quais Han se opõe são as mesmas sem as quais seus livros jamais teriam conquistado o alcance que conquistaram. Junte-se a isso o bom salário que ele recebe dentro do ecossistema da Universidade de Berlim como professor de filosofia e estudos culturais. O que Han pode querer mais? Descansar!
Ao estilo da Teoria Crítica, Han afirma que a sociedade contemporânea está profundamente marcada pela pressão por produtividade e desempenho. Em seu livro, ele argumenta que vivemos em um momento em que o próprio indivíduo se autoescraviza. A autoexploração tornou-se uma norma em um modo de produção em que cada um é supervisor de si mesmo. À medida que busca incessantemente a autossuficiência, cada pessoa acaba caindo em um estado de exaustão e cansaço. A tese de Han sustenta que a autogestão, a hiperatividade e a liberdade individual são aparentemente positivas; no entanto, para os indivíduos mergulhados na sociedade da produção capitalista, ser produtivo é o principal fator das doenças mentais de nosso tempo. A “sociedade do cansaço” afeta a saúde mental dos indivíduos e suas relações sociais, resultando em solidão e despersonalização.
Han aplica muito bem o que aprendeu na velha cartilha da “dialética negativa” da Teoria Crítica. A matriz da Teoria Crítica surgiu na Alemanha, na década de 1920, como parte da Escola de Frankfurt, um grupo de intelectuais associados ao Instituto de Pesquisa Social. Este instituto foi fundado em 1923 e buscou desenvolver uma abordagem crítica da sociedade, que integrasse elementos de diversas tradições teóricas, como o marxismo, a psicanálise e a filosofia hegeliana. Um bom teórico crítico entende que é preciso manter o antagonismo em quaisquer que sejam os temas sociais, psicológicos, políticos e econômicos. “A história é luta entre o bem e o mal”, “entre o positivo e o negativo”; entre o “burguês e o trabalhador”, “entre o consciente e o inconsciente”. Sem o antagonismo, não há movimento, não há luta.
O fim do antagonismo representaria “o fim da história”. Para os teóricos críticos, quando um elemento antagônico não mais dá conta de explicar certo fenômeno, faz-se necessário criar um novo antagonismo. Sucessivos antagonismos são criados até que o inimigo contra o qual se luta esteja finalmente vencido. Quem não tiver clareza sobre como funciona o constante “trabalho do negativo” da Teoria Critica dificilmente entenderá o recurso retórico que Han e seus asseclas usam para distorcer e colocar-se contra a realidade.
Assim, para a Teoria Crítica, o burguês (capitalista) deve ser antagonizado pelo proletariado. Quando este último se torna classe média, não mais servindo ao movimento revolucionário, cria-se um novo antagonismo: o lumpemproletariado, que é a classe trabalhadora ainda não integrada ao sistema produtivo formal e que vive em condições de marginalidade. Para “desprecarizar” o trabalho, luta-se para inserir essa classe marginalizada no sistema formal. Ao antagonizar o sistema informal de trabalho, uma vez inserida no sistema formal, com o desenvolvimento da sociedade da inovação e da produção em escala, onde não há mais “chefe” ou patrão burguês para antagonizar, surge a sociedade do cansaço, na qual o próprio indivíduo se torna seu próprio patrão, gerenciando seu tempo de trabalho; finalmente, sem um “chefe” a ser antagonizado emergirá a negação da “sociedade do cansaço”: a “sociedade do descanso”.
Nesse nível de antagonismo dialético, o próprio indivíduo precisa antagonizar a si mesmo, posto que se encontra imerso na sociedade da autossuficiência e da autonomia do trabalho. Para não cair na exaustão da “sociedade do cansaço”, o indivíduo terá que antagonizar sua própria individualidade e liberdade de autogestão. O encontro consigo mesmo, isto é, a negação da “sociedade do cansaço”, virá com a negação do trabalho e o posterior rompimento com o sistema capitalista. Com a crítica ao sistema, o academiquês dialético de Han parece ensejar o advento do “paraíso comum” da “sociedade do descanso”, antagonista à “sociedade do cansaço”.
Na “sociedade do descanso”, um novo paradigma contrário à exaustão da sociedade da autogestão, o indivíduo não terá nada e será feliz. Seu maior patrimônio é o tempo livre, sob o controle de um “mínimo estatal”, para viver sem grandes sacrifícios. Nessa sociedade, o descanso, e não o trabalho, emerge não apenas como uma forma de antagonizar o sistema capitalista da sociedade do cansaço, mas também como uma nova forma de controle.
Para Han, enquanto na sociedade do cansaço o indivíduo se “despersonaliza”, pois se encontra imerso na sociedade da eficiência e da autogestão, caberá ao novo sistema, que é antagonista da “sociedade do cansaço”, conferir uma nova “persona” ao indivíduo despersonalizado. Com a instalação da “sociedade do descanso”, o indivíduo não terá muito o que consumir, uma vez que o “novo capital individual”, repersonalizado, consistirá em não acumular, não consumir e não ter nada. O “novo homem”, “o homem além do homem” do pós-sociedade do cansaço, não mais revestido por uma ética da prosperidade, mas sim pela escassez, construirá um “novo mundo” sem divisões de classe. Quando a “santa escassez” chegar, o homem, livre da ética protestante e do espírito do capitalismo, estará pronto para habitar a nova terra, livre da exaustão da sociedade do cansaço.
Quaisquer semelhanças entre essa breve e irônica descrição do contraponto entre a sociedade do cansaço (capitalista) e a sociedade do descanso (anticapitalista) com um famoso manifesto do século XIX, repaginado sob novas plumas e paetês, não são mera coincidência. A “sociedade do cansaço” e da despersonalização precisa ser antagonizada com a “sociedade do descanso”, da personalização de um novo espírito, de uma nova ética em que não ter nada é o único caminho para a felicidade.
Sem desconsiderar os fatos, o academiquês revolucionário de Han jamais conseguiria construir uma crítica ao sistema que retirou milhões de pessoas da pobreza em todo o mundo. O capitalismo promoveu o crescimento econômico por meio da inovação, do investimento e da concorrência, o que levou a uma expansão da produção e à redução dos custos. Apesar de todos os problemas que o sistema enfrenta, não podemos ignorar que foi a partir dele que as oportunidades de trabalho e o crescimento da renda aumentaram globalmente. Há uma grande concentração de renda — isso, de fato, é um problema —, mas pior do que isso é não possuir a capacidade de produzir capital. O problema do sistema não é propriamente o aumento do capital, mas sim a concentração desse capital em oligopólios e nos cofres do Estado. Contudo, isso não é motivo para “jogarmos a água do banho junto com o bebê fora”.
O sucesso de Han no ecossistema acadêmico e no debate público contemporâneo demonstra que, além de ter comida no prato, as pessoas estão em condições de comprar seus livros. Sem capital no bolso, os eufóricos consumidores de suas ideias teriam que fazer outras escolhas; certamente, escolheriam comida no prato, pois ideias, pura e simplesmente, não enchem a barriga. Somente na sociedade da superabundância e do consumo tornou-se possível consumir ideias, mesmo aquelas que vão contra o próprio sistema.
Não há dúvidas de que “o sistema é bruto”, mas a verdadeira brutalidade é acreditar que um mundo melhor possa surgir adotando uma postura anticapitalista. Isso é, no mínimo, irresponsável e contraintuitivo. Acreditar que podemos construir um mundo melhor na escassez e no nivelamento da pobreza, como costuma acontecer em países que adotaram um sistema econômico planificado e anticapitalista, é uma ilusão. Ser anticapitalista e contrário à sociedade de consumo quando se está bem alimentado é fácil. Somente na mente de pessoas bem nutridas, que usufruem das facilidades que o sistema proporciona, esse tipo de sandice intelectual é capaz de surgir.
Em Seul, capital da Coreia do Sul, onde Han desenvolveu suas ideias, a cidade tornou-se um dos principais centros econômicos do país. Atualmente, é a quarta maior economia da Ásia e a décima-primeira do mundo. A “sociedade do cansaço” de Han revela-se como um conceito completamente deslocado da realidade, uma vez que, na prática, o crescimento econômico de Seul nas últimas décadas fez com que, apesar do cansaço, o país de Han, que já foi um dos mais pobres do mundo na década de 1950, se tornasse uma nação desenvolvida.
Para substituirmos o tipo de sociedade atual por outra menos cansativa, a “sociedade do descanso”, teríamos que fazer uma escolha difícil: viver cansado na abundância ou descansado na escassez. É exaustivo ler tanta hipocrisia e dissonância nas páginas de Han. A “psicopolítica do oprimido” de Han, revestida pelo academiquês, apresenta-se como uma nova expressão rançosa e anti-neoliberal, adotando o recorrente método de enxergar opressão em tudo. A opressão do indivíduo sobre si mesmo na sociedade do cansaço antagoniza a antiga opressão do chefe malvado pela ausência do chefe. O academiquês não perdeu tempo e passou a chamar essa nova modalidade de trabalho de “uberização”.
Na visão subversiva de Han, a “sedução da liberdade” na sociedade do cansaço não passa de uma nova armadilha neoliberal. O convite a participar livremente da comunidade das redes descentralizadas do poder tecnológico é, em seu academiquês, uma tecnologia da dominação. O “canto da sereia” por trás da liberdade neoliberal é visto por Han como uma sofisticada prisão mental. Depois de encher os bolsos no pujante mercado editorial, Han acusa a política e a economia liberal de serem opressoras.
Na visão haniana, a liberdade neoliberal não é a verdadeira liberdade, posto que nos convida a uma prisão tecnológica de controle e maximização do consumo. Insisto: – “Alguém precisa avisar a Han que, no mercado livre dos conceitos, seus livros alcançaram uma popularidade que jamais teriam alcançado não fossem as mesmas ferramentas econômicas digitais que ele tanto condena e, sem as quais, seu academiquês jamais teria tido audiência”.
Com o conceito de “sociedade do cansaço”, o novo messias do anticapitalismo não esconde a hipocrisia de suas ideias. Han nos convida a sair do sistema que ele mesmo se serve. O anticapitalismo latente de Han revela o estado de dissonância e distanciamento que o academiquês provoca em todos que participam do ecosistema acadêmico sem qualquer preocupação com a realidade.
Cansa ler nas páginas de Han a afirmação de que a suposta transparência neoliberal não passa de um disfarce para a não transparência, uma nova forma de controle das forças do mercado. Na visão dissonante de Han, o “totalitarismo da liberdade” impõe-se como um novo tipo de tecnologia da violência. Ao afirmar isso, Han não enxerga que está colocando a individualidade e a liberdade como perniciosas e a serviço do sistema neoliberal. Liberdade, realização pessoal, informação descentralizada e livre mercado causam urticária em Han.
Os devotos do academiquês insistem em distanciar-se da realidade com “conceitos” gatilho por toda parte: “uberização”, “modernidade líquida”, “amor líquido”, “pós-modernidade”, “hiper-modernidade”, “sociedade do cansaço”, “sociedade paliativa”, “racismo estrutural”, “racismo reverso”, “lugar de fala”, “necropolítica“, dentre tantas invencionices sem qualquer conexão com a realidade. Aliás, a propósito, já há muito as discussões acadêmicas estão a léguas de distância do grande público. O cardápio de “conceitos” se tornou tão extenso e obtuso que já não é mais possível esconder o colapso cognitivo desse ecossistema.
A subversão do debate público e a prática do academiquês funcionam como uma verdadeira arma de guerra psicológica, por meio da qual as tribos que permeiam o ecossistema acadêmico utilizam o expediente do hermetismo para desconsiderar os fatos. Se parte dos proventos mensais anticapitalistas de Han começasse a ser depositada em minha conta bancária, juro que passaria a considerar se não é chegado o momento de me preparar para habitar a nova terra, livre da exaustão da “sociedade do cansaço”.
Cansei de tanta hipocrisia: “Eis a hora de partir: eu para a ‘sociedade do cansaço’ na abundância, vós para a ‘sociedade do descanso’ na escassez. Quem de nós segue o melhor rumo, ninguém o sabe, exceto a divindade.”
Perfeito o artigo compartilhado, este professor me inspira bastante, sempre fui um ávido admirador da filosofia, mas através deste “Mestre” (se me permite chamar-lo assim) é que eu realmente me apaixonei por tal Ciência, Marcus Everson é um real educador, não somente um professor, mas sim um indivíduo formador de um humano faminto pelo conhecimento.
Sou grato por ter a oportunidade de aprender e conhecer sobre a philo “amor, amizade e/ou afinidade” sophia “sabedoria, conhecimento”, jamais cairá em esquecimento nenhum de seus ensinamentos a mim passados, espero que minha admiração e inspiração pela filosofia continue firme até o fim da minha vida e espero, também, que Marcus Everson continue sendo e agindo dentro da sala de aula e nos respectivos encontros filosóficos colegiais um ser inspirador.
Mais uma vez parabenizo o educador em questão, de fato uma crítica relevante e bem apurada. Me despeço deste texto, de maneira contente, pois acabo de ler uma exposição de algo que poucos teriam a coragem de afrontar.
Saudações:
Amintas
Excelente texto. O senhor foi preciso em cada palavra. Ainda bem que temos mentes brilhantes que não se deixam levar por radicalismo
Um dos fatores constituintes da formação/percepção intelectual é a coragem. Não a falsa coragem que grita, sem mais nem menos, “fuck you!”. Esta “coragem” é manifesto do desequilíbrio, dos baixos instintos, do chafurdar na iniquidade, do esquerdismo psicopata, condenado até mesmo por Lenin. Estou aqui a apontar a verdadeira e legítima coragem tão bem explicada – diria até mesmo proposta – pelo estagirita Aristóteles: O intelectual que tanto resiste quanto de acordo com o que é necessário e por conta da razão certa. Isso vale também em relação ao ousar.
Marcus Éverson assim age, como o intelectual de escol que é. Ao apontar os furos teóricos ( e de práxis) do filósofo (um filósofo canastrão, mas, sim, um filósofo) Byung-Chul Han, revela alguns pontos essenciais sobre si mesmo, isto é, sobre o articulista: sabe ler, compreende bem o que lê e é capaz (coisa cada vez mais rara) de se contrapor de forma fundamentada.
O artigo do Doutor Éverson me induziu a reler o livro de Han. E o farei, Com a satisfação de saber que um espírito iluminado, muito acima da minha altura, percebeu situações que eu percebi. Mas, no caso dele, o percebeu de forma ainda mais completa, o que torna seu comentário ainda mais brilhante. Eis um artigo que recomendo vivamente.
Meu Deuuuuuus! Traga um 🏆 para esse professor. Não me lembro de ter lido um artigo tão bom quanto esse sobre o tema. Traduziu exatamente o que eu senti enquanto lia esse livreto horroroso totalmente enviesado, marxista ultrapassado, chegava a me dar ânsia de vômito, sem contar as teorias e argumentos do autor que podem ser facilmente desconstruídas um a um como foi nesse artigo. Parabéns! Nem lhe conheço e já te gosto.
Prezado Ernania,
Sinto-me gratificado por ter lido o Ensaio e pelas palavras elogiosas. Pensei que só eu havia tido essa impressão sobre o academiquelês hipócrita do Han. Fico feliz que você também tenha percebido. Assim que tiver oportunidade leia meus demais ensaios. Forte abraço